Fechei a porta de meu novo quarto, indignada com o tratamento a que tinha sido submetida por aquele Erik e por meu irmão. Adorava Paul, mas, ás vezes, ele podia ser bem irritante. O modo como o estranho mascarado me questionara tinha me assustado. Sua voz forte e imperativa me causara arrepios. Paul já tinha falado sobre ele, sobre o seu defeito no rosto e sua austeridade. Não imaginava encontrar um homem imponente, de grande estatura, forte, com olhos verdes profundos e um rosto atraente, pelo menos na face descoberta... De qualquer maneira, tinha sido um estúpido grosseiro ao tratar-me daquela forma, minutos atrás. Mas, não deixaria que ninguém estragasse minhas primeiras impressões da nova vida.
Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Parecia um sonho. Quando a carruagem entrou nas ruas de Londres, beliscara-me para verificar se aquilo era real. Tudo era muito diferente de Stansted, aquele fim de mundo onde morava a “Bruxa”, minha adorável tia. Não imaginava que pudesse existir pessoa mais mesquinha, estúpida e abominável que aquela. Graças a Deus, meu irmão viera salvar-me de uma morte lenta naquele lugar. Mais um pouco e viraria uma morta-viva.
- Ponha esta cabeça para dentro antes que você a perca pelo caminho, antes de chegarmos em casa – gritara meu querido salvador.
Olhara fascinada para os lindos chapéus emplumados ou cobertos por flores, de grandes abas, que enfeitavam a cabeça das elegantes mulheres que desfilavam nas ruas, acompanhadas por finos cavalheiros ou por velhas damas de companhia. Quantas lojas diferentes, a movimentação intensa de coches, indo e vindo. Não. Não seria este senhor Erik que desbotaria o brilho deste dia inesquecível.
Ouvi uma batida leve na porta.
- Quem é? – perguntei, desconfiada que pudesse ser Paul e seu amigo.
- Sou eu, Emma.
- Sim? O que quer?
- O almoço está servido, senhorita.
Fiquei na dúvida se deveria descer e encontrar novamente aquele “senhor”. O seu olhar havia me perturbado. Não! Não o deixaria me incomodar.
- Obrigada. Já vou descer.
Acabei por trocar de vestido, colocando algo mais adequado para a ocasião. O primeiro almoço na residência de meu irmão em Londres. Não podia descer vestida com aquela indumentária horrorosa feita por minha “querida” tia, especialmente para nossa viagem. Não sei como havia sido convencida a vestir aquilo. Talvez fosse por ser a última vez em que a veria.
- Então? Já está mais calma? – perguntou Paul, com seu conhecido sorrisinho irônico quando me viu entrar na sala.
- Você deveria perguntar isto ao senhor Erik, não a mim.
Nossos olhares se cruzaram mais uma vez. Estremeci.
- Gostaria de pedir-lhe desculpas por meu comportamento. Não era minha intenção provocar impressão tão desagradável na irmã de meu grande amigo. Espero que possa reverter este mal estar causado na senhorita.
Sua voz tornara-se mais suave e agradável.
- Está bem... Está desculpado. – respondi após alguns segundos de silêncio.
- Bem, vamos sentar e almoçar? Encerramos a sessão de desentendimentos? Vamos ser todos amigos? – Paul tentava quebrar o clima tenso que estava no ar.
O almoço iniciou ainda com ânimos pouco apaziguados e mudos. O primeiro a dissolver a nuvem de ressentimentos foi, surpreendentemente, “ele”.
- Paul falou-me que a senhorita gosta muito de música – sua voz realmente era linda e provocante.
- É, gosto.
- Você toca piano muito bem.
- Como o senhor pode saber, se estava mais preocupado em expulsar-me de casa quando me encontrou?
- Cathy!– exasperou-se, Paul.
- Não se preocupe, Paul. A senhorita Catherine tem toda a razão para ainda estar irritada comigo. Saiba que eu pude ouvi-la tocar tempo suficiente para notar o dom musical nas suas notas. Gostaria de dizer-lhe que poderá tocar quando quiser, se isto a fizer feliz. Comprei este piano ontem para meu uso, mas agora faz parte da casa e é de todos nós. Não tinha idéia de que teria mais alguém para compartilhar deste meu prazer.
Não tive como não me render àquelas palavras gentis, ditas de maneira tão cativante.
- Fico muito agradecida com seu oferecimento – falei o mais secamente que pude, ainda tentando manter-me na defensiva.
- Eu não sabia desta nova faceta criativa entre suas qualidades, Erik – indagou Paul.
- Talvez o senhor pudesse nos agraciar com sua música após o almoço? – falei para provocá-lo um pouco.
- Infelizmente, maninha, Erik e eu teremos de ir à loja agora à tarde para resolver os últimos detalhes, antes de abri-la amanhã, pela manhã. Temos que começar a ganhar dinheiro o mais rápido possível. Até agora só tivemos despesas. Não fosse a sociedade com Erik, que tem colocado seu próprio capital no negócio, não sei como estaríamos.
- Paul, nós somos sócios e nada mais justo que eu cubra metade das despesas.
- Bem, então vamos terminar de almoçar e tratar de negócios depois.
- Que tal após o jantar? – perguntei intrometidamente.
- O quê? – perguntou Paul.
- Que tal o senhor Erik tocar para nós após o jantar?
- Ah! Claro. Como quiserem. Será um prazer – respondeu ele, elegantemente.
O almoço transcorreu tranquilo até o final. Ânimos apaziguados, pude observar melhor o meu antagonista de uma hora antes. Tinha maneiras requintadas, contidas, um olhar tristonho, mesmo quando tentava esboçar um sorriso. Parecia carregar uma desilusão muito grande com algo ou alguém. O que escondia atrás daquela máscara, além de uma deformidade física?
Logo após terminarmos a sobremesa, ambos despediram-se de mim e foram para a joalheria.
Durante o início da tarde, não conseguia tirar aquele olhar e aquela voz de minha cabeça. Tentei distrair-me com a arrumação de meu quarto, mas sua figura continuava a assombrar-me.
Decidi sair e visitá-los de surpresa. Na vinda para casa, Paul havia me mostrado onde ficava a loja. Assim, não teria problemas em achá-la.
Precisava de roupas novas. Aqueles meus antigos vestidos só eram adequados para o campo, não para as distintas ruas londrinas. Estando com meu melhor vestido, não precisei preocupar-me em trocar de vestes, infelizmente.
Apesar dos protestos da senhora Emma, respirei fundo e mergulhei no movimento das calçadas da Dover Street. Era um novo mundo. Tinha vontade de cantar e dançar, mas achei que não ficaria muito bem. Apenas um sorriso nos lábios, que insistia em permanecer, denunciava a minha felicidade. Depois de uma dezena de paradas nas vitrines das cercanias, finalmente cheguei diante da Joalheria Marback. Achava estranho o senhor Erik não ter querido colocar seu nome junto ao nosso, já que sendo sócio, tinha este direito. A fachada era de muito bom gosto, com a porta em madeira entalhada, emoldurada por um grande arco retangular de mármore negro, com alguns discretos veios mais claros formando desenhos abstratos, onde se podia ver uma placa dourada com o nome da joalheria gravado. A vitrine era pequena, também emoldurada pelo mesmo mármore escuro, mas o veludo vermelho que forrava todo o seu fundo, realçava as belas jóias colocadas de forma estudada sobre ele. Era difícil passar por ali e não ter sua atenção captada por aqueles brilhantes e pedras preciosas. Fiquei orgulhosa de meu irmão. A faixa de “Breve Inauguração” ainda pendia sobre o mostruário. Toquei a campainha e fiquei aguardando. Logo, Paul apareceu, surpreso com minha aparição inesperada.
- Cathy! Como você veio até aqui sozinha?
- Ora, você tinha me explicado como chegar. Não foi difícil. Vai me deixar entrar ou vamos ter que ficar conversando no meio fio?
- Mas você é uma moça solteira. Não pode ficar andando por aí desacompanhada – falou ao mesmo tempo em que me deixava entrar.
- Ora, irmãozinho, já não sou nenhuma criancinha. Já estou ficando quase uma solteirona e você continua a me tratar como uma deficiente mental. Por favor!!
- Solteirona, porque você quer. Com o seu gênio... Mas logo daremos um jeito nisso.
- Como assim, daremos um jeito?
- Mudando de assunto, minha cara, já que chegou até aqui, o que achou?
- Está linda! – falei, ao ver encantada que, internamente, a joalheria lembrava aquelas lojas caríssimas que eu havia visto momentos antes de chegar ali. Um suntuoso lustre de cristal pendia sobre o centro da sala – Não tinha idéia que você tivesse tão bom gosto para decoração, Paul.
- O gosto é de Erik. Eu, pessoalmente, achei muito rebuscado, mas já vi que ele a agradou – falou em tom mais baixo.
- Eu ouvi isto, Paul – soou aquela voz de barítono, meio que rindo. Será que ele sabia cantar também?
Ele ultrapassou a cortina de veludo vermelho que separava a recepção da provável área da oficina. Logo ficou sério e disse:
- é um prazer recebê-la aqui, senhorita Catherine.
Começava a gostar do som que meu nome fazia ao sair de sua boca. Ele tinha um sotaque encantador. Paul havia me dito que ele era francês. Normalmente, eu preferia que me chamassem de Cathy, mas dito por Erik, meu nome inteiro soava como uma nota musical.
- O que vocês estão fazendo? – falei, já atravessando a porta onde ele estava postado, roçando de leve em suas roupas elegantes.
Logo vislumbrei sua suposta mesa de trabalho, com vários esboços de desenhos, alguns já finalizados, aparentemente. Já sabia que ele desenhava as novas jóias de Paul, só não tinha idéia de quanta criatividade ele era capaz.
- Ah! Mas que lindos desenhos. Será que meu irmão vai conseguir transformá-los em jóias reais, como merecem?
- Minha pequena intrometida, modéstia á parte, seu irmão aqui tem grande habilidade na ourivesaria. Vou lhe mostrar algumas de nossas criações já terminadas.
Ele pegou uma caixa de madeira que estava sobre sua mesa, colocada quase ao lado da outra, e abriu-a. As peças eram de uma delicadeza e beleza estonteantes, principalmente as filigranas. Não resisti e pedi para colocar um dos colares. Ele era formado por um lindo cordão de ouro e no centro pendia a silhueta de um buquê de rosas formadas por incrustações de brilhantes e rubis.
Broches, anéis, gargantilhas. Uma visão divina para qualquer mulher deixar-se atordoar. Fiquei admirada ao imaginar que todas aquelas formas haviam sido criadas por aquele homem de modos tão contidos. Ele tinha de ter uma alma muito sensível, coisa que não deixava transparecer. Um homem misterioso e muito interessante. Podia sentir os seus olhos buscando saber se eu aprovara o que via. Senti medo do que estava sentindo. Nunca experimentara aquela sensação antes. E ela não era desagradável.
- Acho que vocês vão ter muito trabalho pela frente. Talvez precisem de uma funcionária para auxiliar nas vendas. Neste caso, podem contar comigo.
- Só o que faltava. Você trabalhando aqui? Pode parar de supor qualquer coisa deste tipo. Você não precisa de emprego. Precisa de um marido.
- Paul, você é muito antiquado.
- Pode ser, mas ainda sou o responsável por você e vou tentar mantê-la dentro da linha, senhorita Catherine. Por falar nisso, pedi a senhora Emma que contratasse uma costureira para lhe fazer roupas novas. Parece que ela vai vê-la amanhã pela manhã.
- Oh, maninho, você é um amor! – disse, já me jogando em seus braços e dando-lhe um beijo estalado na face.
Erik mantinha-se calado durante todo o tempo, com os olhos de um verde intenso a fitar-nos. O que passaria por sua mente? Pareceu esboçar um sorriso tímido ao ver nossos modos efusivos.
- Bem, cavalheiros, vou andando.
- Vá direto para casa, Cathy.
- Se eu disser que sim, estarei mentindo. Tem tanta coisa para se ver por aqui. Só algumas voltinhas para reconhecer meu novo bairro, está bem? – e dei meu conhecido olhar para seduzir irmãos.
- Cuidado, menina!
- Eu sei cuidar muito bem de mim. Não se preocupe.
À noite, após o jantar, lembrei o senhor Erik do prometido. Estava ansiosa por ouvi-lo ao piano.
- Se prometi, cumprirei a promessa – falou, dirigindo-se ao piano, onde se sentou serenamente, parecendo reverenciar o instrumento. Suas mãos fortes e grandes percorreram o teclado com delicadeza, com seus dedos acariciando cada tecla como se fosse uma amante, procurando ver se estava afinado. Certificou-se que estava tudo em ordem e começou a tocar uma linda melodia que eu nunca ouvira antes. Era triste, melancólica e sensual. Não resisti e perguntei-lhe, tão logo acabou de tocá-la:
- Quem é o compositor? Não estou reconhecendo-a.
- Eu a compus – falou após um período de incerteza se deveria fazer esta revelação.
- Ela é muito bonita – foi o que consegui articular, pois tive medo de perguntar quem teria sido a fonte de inspiração. Alguma paixão mal resolvida?
- Por favor, Erik, toque mais para nós. Você é um grande artista – disse Paul – Sempre me surpreendendo, amigo.
- Por favor, toque mais - falei, aproximando-me do piano.
Ele me lançou um olhar que atravessou minha alma e me fez tontear. Consegui disfarçar esta sensação segurando-me na estrutura de madeira de cor preta e brilhante.
A música recomeçou. Agora mais alegre. Era de uma conhecida opereta italiana. Ele tocava esplendidamente. Como eu gostaria de tocar assim, com essa intimidade com as notas musicais.
- Agora é a sua vez, senhorita Catherine – falou-me, assim que chegou ao fim de sua música.
- Fico até envergonhada de tocar qualquer coisa depois de sua apresentação. Terei que estudar muito para tentar chegar aos seus pés.
- A senhorita gostaria de tentar? Posso lhe ensinar a aprimorar sua técnica.
- Sério? Ah, eu adoraria. Isto é, se não for atrapalhar o seu trabalho.
- Claro que não. Será um prazer. Podemos ouvi-la agora? – disse ele, já se levantando e
cedendo seu lugar para mim.
Sentei-me, tentando evitar seus olhos, e comecei a tocar uma sonata de amor.
Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Parecia um sonho. Quando a carruagem entrou nas ruas de Londres, beliscara-me para verificar se aquilo era real. Tudo era muito diferente de Stansted, aquele fim de mundo onde morava a “Bruxa”, minha adorável tia. Não imaginava que pudesse existir pessoa mais mesquinha, estúpida e abominável que aquela. Graças a Deus, meu irmão viera salvar-me de uma morte lenta naquele lugar. Mais um pouco e viraria uma morta-viva.
- Ponha esta cabeça para dentro antes que você a perca pelo caminho, antes de chegarmos em casa – gritara meu querido salvador.
Olhara fascinada para os lindos chapéus emplumados ou cobertos por flores, de grandes abas, que enfeitavam a cabeça das elegantes mulheres que desfilavam nas ruas, acompanhadas por finos cavalheiros ou por velhas damas de companhia. Quantas lojas diferentes, a movimentação intensa de coches, indo e vindo. Não. Não seria este senhor Erik que desbotaria o brilho deste dia inesquecível.
Ouvi uma batida leve na porta.
- Quem é? – perguntei, desconfiada que pudesse ser Paul e seu amigo.
- Sou eu, Emma.
- Sim? O que quer?
- O almoço está servido, senhorita.
Fiquei na dúvida se deveria descer e encontrar novamente aquele “senhor”. O seu olhar havia me perturbado. Não! Não o deixaria me incomodar.
- Obrigada. Já vou descer.
Acabei por trocar de vestido, colocando algo mais adequado para a ocasião. O primeiro almoço na residência de meu irmão em Londres. Não podia descer vestida com aquela indumentária horrorosa feita por minha “querida” tia, especialmente para nossa viagem. Não sei como havia sido convencida a vestir aquilo. Talvez fosse por ser a última vez em que a veria.
- Então? Já está mais calma? – perguntou Paul, com seu conhecido sorrisinho irônico quando me viu entrar na sala.
- Você deveria perguntar isto ao senhor Erik, não a mim.
Nossos olhares se cruzaram mais uma vez. Estremeci.
- Gostaria de pedir-lhe desculpas por meu comportamento. Não era minha intenção provocar impressão tão desagradável na irmã de meu grande amigo. Espero que possa reverter este mal estar causado na senhorita.
Sua voz tornara-se mais suave e agradável.
- Está bem... Está desculpado. – respondi após alguns segundos de silêncio.
- Bem, vamos sentar e almoçar? Encerramos a sessão de desentendimentos? Vamos ser todos amigos? – Paul tentava quebrar o clima tenso que estava no ar.
O almoço iniciou ainda com ânimos pouco apaziguados e mudos. O primeiro a dissolver a nuvem de ressentimentos foi, surpreendentemente, “ele”.
- Paul falou-me que a senhorita gosta muito de música – sua voz realmente era linda e provocante.
- É, gosto.
- Você toca piano muito bem.
- Como o senhor pode saber, se estava mais preocupado em expulsar-me de casa quando me encontrou?
- Cathy!– exasperou-se, Paul.
- Não se preocupe, Paul. A senhorita Catherine tem toda a razão para ainda estar irritada comigo. Saiba que eu pude ouvi-la tocar tempo suficiente para notar o dom musical nas suas notas. Gostaria de dizer-lhe que poderá tocar quando quiser, se isto a fizer feliz. Comprei este piano ontem para meu uso, mas agora faz parte da casa e é de todos nós. Não tinha idéia de que teria mais alguém para compartilhar deste meu prazer.
Não tive como não me render àquelas palavras gentis, ditas de maneira tão cativante.
- Fico muito agradecida com seu oferecimento – falei o mais secamente que pude, ainda tentando manter-me na defensiva.
- Eu não sabia desta nova faceta criativa entre suas qualidades, Erik – indagou Paul.
- Talvez o senhor pudesse nos agraciar com sua música após o almoço? – falei para provocá-lo um pouco.
- Infelizmente, maninha, Erik e eu teremos de ir à loja agora à tarde para resolver os últimos detalhes, antes de abri-la amanhã, pela manhã. Temos que começar a ganhar dinheiro o mais rápido possível. Até agora só tivemos despesas. Não fosse a sociedade com Erik, que tem colocado seu próprio capital no negócio, não sei como estaríamos.
- Paul, nós somos sócios e nada mais justo que eu cubra metade das despesas.
- Bem, então vamos terminar de almoçar e tratar de negócios depois.
- Que tal após o jantar? – perguntei intrometidamente.
- O quê? – perguntou Paul.
- Que tal o senhor Erik tocar para nós após o jantar?
- Ah! Claro. Como quiserem. Será um prazer – respondeu ele, elegantemente.
O almoço transcorreu tranquilo até o final. Ânimos apaziguados, pude observar melhor o meu antagonista de uma hora antes. Tinha maneiras requintadas, contidas, um olhar tristonho, mesmo quando tentava esboçar um sorriso. Parecia carregar uma desilusão muito grande com algo ou alguém. O que escondia atrás daquela máscara, além de uma deformidade física?
Logo após terminarmos a sobremesa, ambos despediram-se de mim e foram para a joalheria.
Durante o início da tarde, não conseguia tirar aquele olhar e aquela voz de minha cabeça. Tentei distrair-me com a arrumação de meu quarto, mas sua figura continuava a assombrar-me.
Decidi sair e visitá-los de surpresa. Na vinda para casa, Paul havia me mostrado onde ficava a loja. Assim, não teria problemas em achá-la.
Precisava de roupas novas. Aqueles meus antigos vestidos só eram adequados para o campo, não para as distintas ruas londrinas. Estando com meu melhor vestido, não precisei preocupar-me em trocar de vestes, infelizmente.
Apesar dos protestos da senhora Emma, respirei fundo e mergulhei no movimento das calçadas da Dover Street. Era um novo mundo. Tinha vontade de cantar e dançar, mas achei que não ficaria muito bem. Apenas um sorriso nos lábios, que insistia em permanecer, denunciava a minha felicidade. Depois de uma dezena de paradas nas vitrines das cercanias, finalmente cheguei diante da Joalheria Marback. Achava estranho o senhor Erik não ter querido colocar seu nome junto ao nosso, já que sendo sócio, tinha este direito. A fachada era de muito bom gosto, com a porta em madeira entalhada, emoldurada por um grande arco retangular de mármore negro, com alguns discretos veios mais claros formando desenhos abstratos, onde se podia ver uma placa dourada com o nome da joalheria gravado. A vitrine era pequena, também emoldurada pelo mesmo mármore escuro, mas o veludo vermelho que forrava todo o seu fundo, realçava as belas jóias colocadas de forma estudada sobre ele. Era difícil passar por ali e não ter sua atenção captada por aqueles brilhantes e pedras preciosas. Fiquei orgulhosa de meu irmão. A faixa de “Breve Inauguração” ainda pendia sobre o mostruário. Toquei a campainha e fiquei aguardando. Logo, Paul apareceu, surpreso com minha aparição inesperada.
- Cathy! Como você veio até aqui sozinha?
- Ora, você tinha me explicado como chegar. Não foi difícil. Vai me deixar entrar ou vamos ter que ficar conversando no meio fio?
- Mas você é uma moça solteira. Não pode ficar andando por aí desacompanhada – falou ao mesmo tempo em que me deixava entrar.
- Ora, irmãozinho, já não sou nenhuma criancinha. Já estou ficando quase uma solteirona e você continua a me tratar como uma deficiente mental. Por favor!!
- Solteirona, porque você quer. Com o seu gênio... Mas logo daremos um jeito nisso.
- Como assim, daremos um jeito?
- Mudando de assunto, minha cara, já que chegou até aqui, o que achou?
- Está linda! – falei, ao ver encantada que, internamente, a joalheria lembrava aquelas lojas caríssimas que eu havia visto momentos antes de chegar ali. Um suntuoso lustre de cristal pendia sobre o centro da sala – Não tinha idéia que você tivesse tão bom gosto para decoração, Paul.
- O gosto é de Erik. Eu, pessoalmente, achei muito rebuscado, mas já vi que ele a agradou – falou em tom mais baixo.
- Eu ouvi isto, Paul – soou aquela voz de barítono, meio que rindo. Será que ele sabia cantar também?
Ele ultrapassou a cortina de veludo vermelho que separava a recepção da provável área da oficina. Logo ficou sério e disse:
- é um prazer recebê-la aqui, senhorita Catherine.
Começava a gostar do som que meu nome fazia ao sair de sua boca. Ele tinha um sotaque encantador. Paul havia me dito que ele era francês. Normalmente, eu preferia que me chamassem de Cathy, mas dito por Erik, meu nome inteiro soava como uma nota musical.
- O que vocês estão fazendo? – falei, já atravessando a porta onde ele estava postado, roçando de leve em suas roupas elegantes.
Logo vislumbrei sua suposta mesa de trabalho, com vários esboços de desenhos, alguns já finalizados, aparentemente. Já sabia que ele desenhava as novas jóias de Paul, só não tinha idéia de quanta criatividade ele era capaz.
- Ah! Mas que lindos desenhos. Será que meu irmão vai conseguir transformá-los em jóias reais, como merecem?
- Minha pequena intrometida, modéstia á parte, seu irmão aqui tem grande habilidade na ourivesaria. Vou lhe mostrar algumas de nossas criações já terminadas.
Ele pegou uma caixa de madeira que estava sobre sua mesa, colocada quase ao lado da outra, e abriu-a. As peças eram de uma delicadeza e beleza estonteantes, principalmente as filigranas. Não resisti e pedi para colocar um dos colares. Ele era formado por um lindo cordão de ouro e no centro pendia a silhueta de um buquê de rosas formadas por incrustações de brilhantes e rubis.
Broches, anéis, gargantilhas. Uma visão divina para qualquer mulher deixar-se atordoar. Fiquei admirada ao imaginar que todas aquelas formas haviam sido criadas por aquele homem de modos tão contidos. Ele tinha de ter uma alma muito sensível, coisa que não deixava transparecer. Um homem misterioso e muito interessante. Podia sentir os seus olhos buscando saber se eu aprovara o que via. Senti medo do que estava sentindo. Nunca experimentara aquela sensação antes. E ela não era desagradável.
- Acho que vocês vão ter muito trabalho pela frente. Talvez precisem de uma funcionária para auxiliar nas vendas. Neste caso, podem contar comigo.
- Só o que faltava. Você trabalhando aqui? Pode parar de supor qualquer coisa deste tipo. Você não precisa de emprego. Precisa de um marido.
- Paul, você é muito antiquado.
- Pode ser, mas ainda sou o responsável por você e vou tentar mantê-la dentro da linha, senhorita Catherine. Por falar nisso, pedi a senhora Emma que contratasse uma costureira para lhe fazer roupas novas. Parece que ela vai vê-la amanhã pela manhã.
- Oh, maninho, você é um amor! – disse, já me jogando em seus braços e dando-lhe um beijo estalado na face.
Erik mantinha-se calado durante todo o tempo, com os olhos de um verde intenso a fitar-nos. O que passaria por sua mente? Pareceu esboçar um sorriso tímido ao ver nossos modos efusivos.
- Bem, cavalheiros, vou andando.
- Vá direto para casa, Cathy.
- Se eu disser que sim, estarei mentindo. Tem tanta coisa para se ver por aqui. Só algumas voltinhas para reconhecer meu novo bairro, está bem? – e dei meu conhecido olhar para seduzir irmãos.
- Cuidado, menina!
- Eu sei cuidar muito bem de mim. Não se preocupe.
À noite, após o jantar, lembrei o senhor Erik do prometido. Estava ansiosa por ouvi-lo ao piano.
- Se prometi, cumprirei a promessa – falou, dirigindo-se ao piano, onde se sentou serenamente, parecendo reverenciar o instrumento. Suas mãos fortes e grandes percorreram o teclado com delicadeza, com seus dedos acariciando cada tecla como se fosse uma amante, procurando ver se estava afinado. Certificou-se que estava tudo em ordem e começou a tocar uma linda melodia que eu nunca ouvira antes. Era triste, melancólica e sensual. Não resisti e perguntei-lhe, tão logo acabou de tocá-la:
- Quem é o compositor? Não estou reconhecendo-a.
- Eu a compus – falou após um período de incerteza se deveria fazer esta revelação.
- Ela é muito bonita – foi o que consegui articular, pois tive medo de perguntar quem teria sido a fonte de inspiração. Alguma paixão mal resolvida?
- Por favor, Erik, toque mais para nós. Você é um grande artista – disse Paul – Sempre me surpreendendo, amigo.
- Por favor, toque mais - falei, aproximando-me do piano.
Ele me lançou um olhar que atravessou minha alma e me fez tontear. Consegui disfarçar esta sensação segurando-me na estrutura de madeira de cor preta e brilhante.
A música recomeçou. Agora mais alegre. Era de uma conhecida opereta italiana. Ele tocava esplendidamente. Como eu gostaria de tocar assim, com essa intimidade com as notas musicais.
- Agora é a sua vez, senhorita Catherine – falou-me, assim que chegou ao fim de sua música.
- Fico até envergonhada de tocar qualquer coisa depois de sua apresentação. Terei que estudar muito para tentar chegar aos seus pés.
- A senhorita gostaria de tentar? Posso lhe ensinar a aprimorar sua técnica.
- Sério? Ah, eu adoraria. Isto é, se não for atrapalhar o seu trabalho.
- Claro que não. Será um prazer. Podemos ouvi-la agora? – disse ele, já se levantando e
cedendo seu lugar para mim.
Sentei-me, tentando evitar seus olhos, e comecei a tocar uma sonata de amor.
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