segunda-feira, 26 de abril de 2010

Coração Atormentado - Capítulo V - Tomás





Os dias que se seguiram foram de relativa paz. Diego passou a esforçar-se mais durante as sessões de fisioterapia, surpreendendo Carlos com seu progresso. As crises de rispidez tornaram-se menos frequentes e menos intensas. A força de seus braços aumentava a cada dia e a musculatura das pernas ainda mantinha-se tonificada com os exercícios. As visitas de Cláudia passaram a escassear.

CLÁUDIA
Parece que ela finalmente havia compreendido que estava liberada do seu compromisso com Diego. Quando aparecia, geralmente era em horários em que Marcelo também estava em casa. Não raramente, Ângela os encontrava a conversar nos cantos da casa, afastados de todos. Ela começou a desconfiar que Cláudia mudara o seu interesse do enteado para o viúvo. Passou a ter medo da reação de Diego, caso isto viesse a ser confirmado. Se ele a amava, esta descoberta poderia provocar uma enorme queda em seu ânimo. Mas nesta situação, infelizmente, ela não poderia fazer nada, a não ser apoiá-lo da melhor maneira possível. Sua relação com Diego melhorara sensivelmente. As visitas regulares de Glória conseguiam deixá-lo mais animado.
Porém, a calma voltou a ser abalada em consequência de uma notícia que chegou aos olhos de Diego. José, o motorista que fora acusado de mexer nos freios do carro e que teria ocasionado o acidente e a morte de Ágata, foi libertado. Ao saber, através dos jornais, numa certa manhã, Diego explodiu revoltado com o fato.
- Como que libertam um assassino? – exclamou furioso chamando a atenção de Marcelo, que tomava o seu café da manhã.
- Eu não quis falar nada para não incomodá-lo, Diego – disse preocupado com a irritação do enteado – Mas, apesar do esforço do nosso advogado, acabaram liberando-o por falta de provas. Também fiquei surpreso e aborrecido com o fato, mas vamos continuar insistindo nas investigações. O advogado não vai deixar o caso esfriar.
- Aborrecido? Se este infeliz fez mesmo o que achamos que fez, ele destruiu a minha vida e levou a de minha mãe. E você só fica aborrecido?? O que há com você, Marcelo? Muito me admira esta sua reação. Você parecia tão decidido a acabar com a vida deste sujeito.
- O que você quer que eu faça? – gritou Marcelo irritado – Quer que eu o mate, vá para a cadeia e acabe com a minha vida também?
Diego estava visivelmente enfurecido, sentindo-se incapaz e injustiçado. Não respondeu nada a Marcelo, mas pegou a xícara que estava a sua frente e jogou-a no chão, espatifando-a e espalhando o líquido marrom escuro sobre o piso do jardim de inverno onde estavam. Ângela sobressaltou-se e correu para tentar acalmá-lo.
- Diego... – rogou colocando a mão sobre seu ombro.
- Deixe-me! – gritou, esquivando-se para evitar o seu toque.
- Desculpe... – murmurou, afastando-se um pouco, mas ainda ficando ao seu lado. Estava surpresa com sua reação, mas podia entender a revolta que ele sentia. Se realmente aquele homem tinha sido culpado pela morte de sua mãe, não podia ficar impune.
Inconformado, deixou a mesa do café e foi até o jardim, próximo à piscina. Precisava respirar um pouco de ar, acalmar-se e clarear a mente. Sentia-se sufocado. Na pressa por afastar-se, a cadeira trancou numa falha do gramado, irritando-o ainda mais. Começou a forçar as rodas com as mãos para liberá-las, mas só conseguiu desequilibrar-se e, antes que Ângela pudesse alcançá-lo, tombaram cadeira e cadeirante de frente.
- Diego! – gritaram, ao mesmo tempo, Marcelo e Ângela, correndo para socorrê-lo.
Por sorte, a queda foi amortecida pelo terreno coberto de grama espessa e macia, mas a dor da humilhação ardeu mais que qualquer ferimento real no ego de Diego. Enquanto Marcelo colocava a cadeira em posição, Ângela tentava levantá-lo do chão, mas ele negou-se a fazê-lo, deixando-se ficar caído de bruços, com as mãos fechadas em punho sob a testa, com o rosto virado para baixo e de olhos fechados.
- Você está bem? – perguntou Marcelo preocupado.
- Quero ficar aqui. Sozinho!
- Diego, eu sinto muito. Nosso advogado está fazendo tudo que está ao seu alcance, mas a nossa justiça é lenta e falha... – desculpou-se com voz pesarosa.
- Não se preocupe. Eu fico aqui com ele – disse Ângela em voz baixa, dispensando a companhia de Marcelo. Este, entendendo que não adiantariam mais desculpas para amenizar a angústia do enteado, retirou-se cabisbaixo.
Pouco depois, ela sentou-se e ficou esperando alguma reação de Diego. Quando achou que esta já tardava muito, resolveu imitá-lo. Deitou-se de bruços, ao seu lado, na mesma posição, e ficou aguardando. Não demorou muito para ouvir a pergunta:
- O que está fazendo? – perguntou ainda com visível irritação.
- Descansando. Realmente é uma delícia ficar deitada nesta grama fresquinha, pensando em nada. Gostei. – disse voltando a face para ele.
- Você é louca... – murmurou ele, desarmado pelas palavras dela, com um sorriso a surgir entre os lábios.
- Não... É sério. – falou retribuindo o sorriso – Quando eu era pequena adorava fazer isto no nosso sítio. Eu tinha uma espécie de esconderijo, entre as árvores frutíferas, onde me refugiava quando estava chateada e não queria que ninguém me perturbasse. Ou ficava deitada de costas, olhando para o céu azul, observando as formas desenhadas pelas nuvens. Quer tentar?
- O quê?
- Deitar de costas.
A sugestão inusitada e o sorriso de Ângela o fizeram deixar de lado a frustração, sofrida há pouco, para realizar o singelo desafio. Viu-a movimentar-se para mudar de posição e começou a imitá-la. Não teve grandes dificuldades e logo estavam, ambos, a admirar a imensidão azul sobre eles.
- Consegue sentir?
- O quê? – Voltou-se para ela, que agora estava de olhos fechados, ainda a sorrir, provocando-lhe um desejo quase esquecido.
- Esta paz, a brisa no rosto, uma sensação relaxante... – Enquanto falava, sentiu uma mudança na luminosidade que refletia em suas pálpebras fechadas e um movimento vindo em sua direção.
Abriu os olhos e a vista foi inundada pela presença de Diego, que apoiado sobre o braço e o cotovelo, virara-se de lado e posicionara-se quase sobre ela. Assustada com tal proximidade e vendo o estranho brilho no olhar de Diego tentou levantar-se, mas foi impedida pelo outro braço dele.
- Fique. Por favor... Não precisa levantar por minha causa. Só quero olhar para você.
- O céu é mais interessante, Diego – brincou, disfarçando sua agitação interior.
- Não acho... – rebateu sedutoramente.
- Pára com isso, Tomás! – exclamou rindo, tentando levantar-se, mas logo se dando conta que cometera um erro terrível na troca de nomes.
- Quem é Tomás? – disparou visivelmente chateado.


DIEGO
- Ninguém... Que bobagem... De onde tirei este nome? – sua voz estava trêmula, denunciando a mentira.
- É o seu namorado?
Desconsertada, levantou-se abruptamente, desta vez não sendo impedida por ele. Sentada, com as pernas estiradas a frente e visão turva, procurava organizar os pensamentos para dar uma resposta à pergunta de Diego, enquanto ele deixara-se rolar sobre as costas, deitando-se novamente, carrancudo.
- Ora, que folga é esta? – soou a voz de Carlos, que acabara de chegar para sua sessão de fisioterapia, para alívio de Ângela, livrando-a de mais explicações dolorosas.
Logo ele notou que chegara em má hora, pois foi fuzilado pela expressão de descontentamento de Diego.
- Estávamos relaxando um pouco antes da sua sessão de tortura – respondeu Ângela, simulando displicência.
- Entendo... – disse, sem entender realmente.
Ângela levantou-se agilmente, observada por Diego. Já de pé, virou-se para ele e estendeu-lhe a mão, num gesto que representava não só ajuda para ele sentar-se e colocar-se em posição para retornar a cadeira, mas também um pedido de trégua.
- Você não respondeu a minha pergunta... – revidou Diego.
- Não. Ele não é meu namorado. Satisfeito? – respondeu azeda.
- Por enquanto... – respondeu com um meio sorriso, aceitando a ajuda oferecida, estendendo a mão.
- Podemos começar a sessão aqui mesmo. Que tal? Vou trazer um colchonete e uma toalha.
- Você é quem sabe. Por mim está ótimo – concordou, sem desviar o olhar de Ângela.
- Vou tomar um pouco d’água, se me dão licença. Volto logo – falou Ângela.
- Fique a vontade... – permitiu Diego, enquanto a via afastar-se rapidamente pelo jardim.
- Perdi alguma coisa aqui? – perguntou Carlos curioso.
- Só uma pequena confusão por parte da Ângela. Nada importante... Que tal buscar o material e começarmos logo os exercícios?
- Tem razão. Já volto.
“Quem é esse Tomás? Será que faz parte dos pontos dolorosos que ela falou outro dia?”, perguntou-se Diego. “Idiota! O que você pretende com este comportamento? Ela não está ao seu alcance. Você não passa de mais um pobre paraplégico que ela é obrigada a cuidar. O que mais você pode despertar numa mulher além de sentimentos altruístas?”, repreendeu-se cruelmente.





Enquanto observava o trabalho físico de Carlos e Diego, encostada no umbral da porta do jardim de inverno, de braços cruzados, pensava no que tinha acontecido momentos atrás. Não podia mais deixar o passado interferir no seu trabalho. Esta confusão de sentimentos tinha que ter fim. Só então notou que Clara aproximara-se oferecendo uma xícara de café.
- Achei que gostaria de algo para animar um pouco – disse ela.
- Muito obrigada, Clara.
- Não há de quê – disse isto e permaneceu ao seu lado, como se quisesse falar mais alguma coisa. Então, continuou – É uma pena um homem tão bonito e moço como ele ficar assim... A mãe dele também era linda. O seu Marcelo era muito ciumento. Até do motorista tinha ciúme... Chegou a colocar a culpa no coitado depois do acidente e, por isso, o pobre está até agora amargando com a polícia em cima dele. Mas eu não acho que tenha sido ele. O seu José era um homem muito bom e gostava muito da dona Ágata, mas não do jeito que o seu Marcelo diz. Ela era boa com todos e ele a admirava do mesmo jeito que a gente, sabe?
- Eles não têm nenhum outro suspeito?
- Não sei... Até agora a polícia não falou nada. Mas fiquei contente que pelo menos soltaram o seu José. A mulher dele veio várias vezes aqui para falar com o seu Diego, mas não deixaram. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco, não é mesmo? Não duvido que tenha sido algum ricaço que fez isso.
- Você suspeita de alguém?
- Deus me livre, Ângela. Não sei de nada. Não está mais aqui quem falou. Dá licença, que acho que a Zica está precisando de mim – disse e saiu apressada dali.
Estes comentários aguçaram a curiosidade de Ângela. “Será que ela sabe alguma coisa?” Daria um jeito de falar com Diego a respeito.
Desde a hora em que Carlos deixou Diego, até depois do almoço, eles trocaram apenas umas poucas palavras. Então Ângela resolveu quebrar o gelo e quando o acompanhava para uma volta no jardim, falou.
- Desculpe-me por hoje. Eu não sei o que me deu...
- Eu fui o inconveniente – interrompeu os pedidos de desculpas secamente– Não tenho que ficar me metendo em seus assuntos pessoais.
- Você está chateado comigo e com razão.
- Não precisa dar explicações.
- Uma vez você me perguntou por que eu escolhera trabalhar com deficientes físicos. Minha resposta não foi uma mentira, mas eu não contei exatamente tudo.
- Já disse que não precisa contar nada – disse, parando de rodar a cadeira junto a um dos bancos do jardim.
- Mesmo assim vou contar. Talvez isto nos ajude – respondeu, permanecendo de pé, diante da vista montanhosa que se estendia ao horizonte. Depois de uma pequena pausa e uma inspiração profunda, tomando coragem, continuou – Tomás era um jovem advogado, recém formado, inteligente, alegre, cheio de vida, noivo e com a cabeça cheia de planos. Ele gostava de nadar e praticava saltos na piscina do clube que frequentava. Um dia, quando ia saltar, uma câimbra o fez desequilibrar-se no alto da prancha e ele caiu, batendo com as costas na beirada da piscina. Teve uma lesão medular na altura de T6 e ficou paraplégico. Sua recuperação foi muito difícil. Ele não conseguia aceitar sua nova situação, apesar de todo o apoio da família e da noiva. Passadas algumas semanas que já estava em casa, chamou a noiva para dizer que não aguentava mais viver daquela maneira e que a amava muito para permitir que ela continuasse sofrendo ao seu lado. Eles tinham começado a namorar muito jovens e ele tinha certeza que ela poderia conhecer outra pessoa e ser feliz. Enquanto ela tentava convencê-lo que nada do que acontecera poderia interferir no amor que ela sentia, ele sacou uma arma e atirou contra a própria cabeça.
- Ele era seu paciente? – perguntou sensibilizado.
- Tomás era meu noivo – disse com um fio de voz, enquanto as lágrimas brotavam violentamente de seus olhos, apesar dela tentar evitar isto desde que começara seu relato.
Diego, chocado, não sabia o que dizer. Aproximou-se dela e segurou-lhe a mão que pendia ao lado do corpo trêmulo, permanecendo em silêncio.
- Isto aconteceu há cinco anos. Fiz terapia por mais de um ano para aceitar que a culpa da sua morte não era minha. Depois de um tempo afastada da faculdade, decidi voltar e acabar o curso, passando a dedicar o meu trabalho a esta área específica, numa tentativa de ajudar a evitar que acontecesse com outras pessoas o que aconteceu com Tomás.
- Ângela... Sinto muito... Não imaginava que...
- Não se sinta mal por isso – continuou, secando as lágrimas com o dorso da mão – Agora você sabe por que sou tão chata e insistente com a sua reabilitação – tentou um sorriso esmaecido, apertou a mão dele que ainda segurava a sua, soltando-a logo em seguida.
- Eu sei o que significa perder alguém que amamos. Imagino o que você deve ter sofrido, principalmente pelo modo como aconteceu.
- Você quer falar sobre isto? – conseguiu perguntar após alguns momentos silenciosos.
- Sobre o quê?
- Sobre sua perda... Hoje eu vi como você ficou revoltado com a notícia da liberação do motorista que trabalhava com vocês na época do acidente.
- Acho que só isto ainda me dá forças para continuar vivendo. Justiça. Depois que eu soube que sofremos um atentado bem sucedido, pois alguém tinha alterado os freios do carro, só penso em ver o culpado atrás das grades. Se não estivesse preso a esta cadeira, talvez já tivesse feito justiça com as próprias mãos.
- Não fale assim, Diego... Entendo a sua revolta, mas este tipo de vingança não leva a nada. O que levou você a pensar que o culpado foi o motorista?
Apesar deste assunto entristecê-lo e deixá-lo amotinado, contou a Ângela a sequencia de fatos que tinham acontecido durante os meses anteriores à morte de Ágata, inclusive o beijo que Marcelo havia visto. Tudo levava a crer que José tinha se apaixonado por Ágata e, ao ser rechaçado, procurou vingar-se dela. Apenas ele tinha acesso aos carros e era responsável pela manutenção deles.
- Eu acho esta história muito estranha. Você nunca suspeitou de seu padrasto?
- Confesso que até pensei nesta possibilidade no início, mas depois comecei a achar que esta idéia era um absurdo. Não acredito que uma pessoa possa simular uma perda tão bem, a não ser que seja um grande ator dramático. Ele sofreu demais com a morte dela. Conversamos muito a respeito disso depois que ele me contou o que tinha acontecido. Além do mais, sua dedicação para comigo foi a de um verdadeiro pai. Enquanto eu me recuperava no hospital, ele mandou fazer toda uma reforma nesta casa para que eu não tivesse maiores dificuldades em minha nova situação.
- E você chegou a falar com este homem, José, depois que voltou para casa?
- Não. Ele foi preso antes de eu sair do hospital. A polícia veio colher o meu depoimento aqui em casa – Fez uma pausa, olhando-a com expressão interrogativa – Por que está defendendo este sujeito?
- Não estou defendendo ninguém. Nem o conheço. Mas é que tenho ouvido conversas sem querer e algumas pessoas não acreditam que tenha sido ele.
- Não é só uma desconfiança, Ângela. A polícia descobriu uma camisa dele, com manchas recentes de graxa e fluído de freio, em uma lixeira. Além disso, também foram encontradas algumas ferramentas sujas com fluído de freio e com as digitais dele, escondidas atrás de um armário na garagem, sendo que a manutenção propriamente dita era feita por um mecânico de confiança e não diretamente por José. Como pode ver, não somos apenas o Marcelo e eu que suspeitamos dele. Por isso me revoltei hoje, quando soube da liberação.
- Talvez a polícia tenha alguma razão para agir assim. Quem sabe outro suspeito?
- Espero que eles tenham uma boa explicação mesmo.
Neste momento, ouviram uma alegre voz feminina:
- Olá! Bem que eu disse à Clara que vocês só podiam estar aqui. Como vão, meus queridos?
- Glória! Que bom ver você! – saudou-a Diego.
- Boa tarde, Dona Glória – imitou-o Ângela.
- Estou interrompendo algo? Estão tão sérios...
- Nada que valha a pena comentar, Glória – desconversou Diego, lançando um olhar de soslaio para Ângela, que logo entendeu que o assunto que conversavam devia ser encerrado ali. – E então alguma novidade?
Se ela sabia da liberação de José, não falou nada. Provavelmente para não incomodar Diego. Assim, enveredou através de outras notícias, que variavam de política a fofocas sociais, sempre com um toque de humor e sarcasmo, provocando o riso em seus interlocutores, o que deu leveza ao ar daquela tarde que começara com tantas revelações dolorosas.


Mais um capítulo entregue. Vocês não imaginam como fico feliz quando consigo postar mais um pedacinho da minha estória. Estou fazendo o possível para entregar pelo menos um capítulo por semana, como já devem ter notado. Obrigada pela paciência de vocês e pelos comentários estimulantes que tenho recebido. Beijos para todos e até o próximo capítulo!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Coração Atormentado - final do Capítulo IV (Lembranças)


Já no corredor, as lágrimas explodiram e abafou o grito de dor que a rasgava por dentro. Diego conseguira reabrir uma ferida que já considerava quase curada. Não sabendo onde esconder-se entrou numa das portas do corredor a sua frente e começou a chorar. Achou que já estava preparada para enfrentar qualquer situação, mas nada a havia preparado para Diego. Desde o início ele mexera com ela, fazendo-a reviver sentimentos adormecidos. Talvez sua mãe tivesse razão e ela devesse tomar outro rumo na profissão. Provavelmente fosse melhor ser demitida, ou pedir demissão, apesar do que dissera à ele sobre não desistir.
Perdida nestes pensamentos, não chegou a ouvir a porta abrir atrás de si.
- Ângela... – retumbou a voz rouca e arfante de Diego – O que houve?
Ela virou-se para mandá-lo sair e dizer que ia embora, mas parou com a boca entreaberta, deparando-se com seu paciente vestido sobre a cadeira de rodas. Era evidente o esforço que havia feito para tal proeza e a angústia em seu rosto.
- Você se vestiu e colocou-se na cadeira sem ajuda? – indagou, deixando para trás sua tristeza e esboçando incredulidade e, ao mesmo tempo, satisfação, ao ver o que ele tinha conseguido.
- Eu disse alguma coisa que a ofendeu? Por que está chorando? – questionava-a, aproximando-se dela – Me perdoe se a magoei. Não foi minha intenção... Eu só queria conversar e conhecê-la melhor.
- Não importa, Diego... O que importa é o que você conseguiu agora. Isso é maravilhoso – disse secando as lágrimas com as mãos e abaixando-se diante da cadeira.
- Foram as suas palavras que me tiraram da inércia. Quero que saiba que eu não sou aquilo tudo que você falou... Ou pelo menos, não era...
- Desculpe por ter dito aquelas coisas, Diego. Eu perdi o controle... Sem querer você tocou em pontos dolorosos, que agora não vêm ao caso.
- Você não disse nenhuma inverdade. Sei que tenho sido desagradável com as pessoas, tentando afastá-las de mim e me tornando um cara indigesto, mas... – ele parou de falar e começou a olhar ao seu redor...
- O que foi? – ela perguntou.
- Este quarto... Era de minha mãe... Desde que voltei, ainda não tinha encontrado coragem para entrar aqui novamente – disse melancolicamente olhando os móveis e objetos do ambiente, procurando os vestígios da presença de Ágata em cada detalhe.
Ângela podia sentir a saudade que o envolvia naquele momento e a tristeza de saber que não veria mais a mãe por ali.
- Como ela era? – perguntou, despertando-o de suas lembranças.


ÁGATA
- Era uma mulher fascinante. Bonita, inteligente, agradável com todos que se aproximavam dela, determinada, uma ótima empresária... Não merecia morrer tão cedo e de forma trágica.
De repente sua atenção foi atraída por um porta-retrato sobre a mesa de cabeceira, onde estava uma foto mais antiga com três pessoas abraçadas. Diego, com 18-19 anos de idade, aparecia no meio de um casal. A mulher à sua direita era muito linda e tinha os mesmos olhos verdes de Diego. O homem à sua esquerda tinha um rosto muito semelhante ao dele, mas com cabelos mais escuros.
- Pode pegar para mim, por favor? – pediu a ela.
Ângela levantou-se, foi até a mesa e pegou a foto emoldurada, entregando-a para Diego.
- Meu pai faleceu um ano depois de tirarmos esta foto... – recordou tristemente olhando a fotografia – Neste momento, parecia que nada de ruim poderia acontecer...
- O que aconteceu a ele?
- Câncer... Após descoberto, levou três meses para acabar com a vida dele. Minha mãe quase enlouqueceu, mas conseguiu sobreviver graças ao trabalho. Dedicou-se mais do que nunca à fábrica. Assim que me formei, passei a trabalhar com ela e, juntos, conseguimos superar a perda. A partir daí, nosso vínculo tornou-se ainda mais forte... A presença de meu pai continuou nesta casa mesmo depois que ela casou-se com Marcelo. Eles ocuparam outro quarto. Este foi preservado como um santuário à memória dele. Não achei uma boa idéia, pois Marcelo nunca aceitou muito bem esta reverência. Mas Ágata ria do ciúme dele, dizendo que tinha direito a ter um canto só seu.
Mal Diego acabara de dizer as últimas palavras, ouviram batidas na porta, que estava entreaberta.
- Seu Diego? – indagou Clara colocando a cabeça para dentro à procura do patrão.
- Sim? – respondeu ele, como que acordado de um sonho.
- O Carlos chegou para a sessão de fisio.
- Obrigada, Clara – respondeu Ângela – Diga a ele que o Sr. Diego já vai descer.
- Está bem – confirmou e saiu.
- Você está bem? – perguntou Ângela.
- Estou... Obrigado por ouvir minhas lamentações – e entregou-lhe o porta-retrato para ser recolocado em seu lugar.
- Às vezes é bom recordar.
- Eu a fiz recordar de alguma coisa agora a pouco e acredito que não tenha sido muito bom – lembrou, olhando-a intensamente – Se quiser falar a respeito...
- Obrigada, Diego. Talvez um dia eu conte, mas não agora... Além do mais, o Carlos está esperando.
- Tenho mesmo que passar por aquela sessão de tortura física de novo?
- Receio que sim – rebateu com um tênue sorriso.
Então, ele colocou as mãos sobre as rodas e começou a empurrá-las, iniciando os movimentos para sair do quarto, sob o olhar zeloso de Ângela.
Naquele dia a sessão de fisioterapia transcorreu da melhor maneira possível, com Diego respondendo mais vigorosamente aos exercícios para satisfação de Carlos. Parecia que finalmente ele se resolvia a cooperar e trabalhar para sua reabilitação.


CARLOS
- Parabéns, Diego – felicitou-o – Se continuarmos neste ritmo, logo você vai tornar-se muito mais independente em seus movimentos e até poderá pensar em voltar a trabalhar.
Esta última afirmação levou Diego a adquirir uma expressão sombria. Não porque ele não quisesse voltar ao trabalho, mas porque ainda não conseguia suportar a idéia dos comentários de pena e a piedade nos olhares daqueles que se acostumaram a vê-lo ágil sobre duas pernas, desempenhando suas funções de engenheiro, dentro da fábrica, de forma hábil.
- Mas ainda temos algum tempo pela frente para pensar nisso – amenizou Ângela, ao perceber a expressão de desânimo em Diego – Talvez você possa começar a trabalhar em casa.
Um arquear de sobrancelhas dele mostrou que a idéia talvez fosse viável. Mas o assunto não foi adiante e Ângela e Carlos não quiseram forçar nenhuma opinião naquele momento.
Mesmo depois que Carlos se foi, Ângela não voltou a falar sobre o desabafo de Diego pela manhã. Tampouco ele.
Durante a tarde, recebeu a visita de Glória, a ex-secretária de Ágata. O rosto de Diego iluminou-se ao ver a mulher o conhecia desde criança e que tantas vezes o visitara durante o período de sua internação após o acidente.
- Boa tarde, meu querido! Vejo que está com uma aparência melhor. E com um novo anjo da guarda a acompanhá-lo – disse admirando Ângela ao seu lado. – Por sinal, muito bonita ela. Como vai, querida?!
- Bem. E a senhora?
- Agora feliz ao ver que o meu amigo aqui parece estar sendo, finalmente, bem cuidado. Eu ando muito preocupada com ele.
- Ele está se saindo muito bem com a fisioterapia e logo vai voltar às suas atividades normalmente.
- Que boa notícia! Tenho rezado tanto por ele...
- Ei, eu ainda estou aqui – exclamou Diego, notando que Glória parecia ter esquecido sua presença e só conversava com Ângela.
- Olhem só que ciumento!
A conversa continuou agradável e Ângela pode ver o quanto Glória o deixava a vontade. Ela o colocava para cima e de modo algum deixava transparecer qualquer sentimento de piedade pelo seu estado atual.
Depois que ela foi embora, ainda fizeram alguns exercícios até a hora em que Lino chegou.
Ângela apenas notificou-o sobre os progressos de Diego, evitando contar o que acontecera entre eles pela manhã. Aquilo ficaria apenas entre os dois. Um vínculo havia sido criado entre eles naquele dia. Seu único temor era como poderia manter escondidos os sentimentos que começavam a fluir em seu coração. Suspeitava que Diego também pudesse ter sentimentos confusos em relação a ela. O modo como passara a olhá-la enquanto o ajudava a exercitar-se ou quando conversavam, provocava-lhe uma excitação que não era adequada e muito menos ética. Sabia de casos de pacientes apaixonarem-se por profissionais que os tratavam, bem como o inverso, mas precisava passar por cima disso para poder continuar ajudando Diego. Precisava deixar claro que estava ao seu lado para ajudá-lo profissionalmente, sem magoá-lo. Talvez estivesse sendo muito severa consigo mesma, ou enxergando coisas demais onde nada havia. O melhor era não pensar demais nisso. Pensando assim, rumou para seu apartamento determinada a investir em sua tese, planejar a sua visita à mãe e à tia e, quem sabe procurar as amigas, que não via a muito tempo, para uma saída. Sair um pouco do isolamento em que vivia talvez viesse a ser bom para colocar as idéias e anseios no lugar.






Eis o final do quarto capítulo. Parece que as coisas estão se ajeitando se ajeitando... Queria agradecer os comentários e recadosdas minhas queridas Cris, Nadja, Vanessa, Angel e Lucy. Muito obrigada. À Lucy, então, que acabou por fazer uma maratona de leitura, comentando não só a estória atual, mas também a anterior, comparando as personagens a pessoais reais e tornando o meu ato de escrever estes romances ainda mais prazeroso, pois sinto que posso emocionar minhas leitoras de alguma maneira. Um beijo especial prá ti. Acho que escrever é, entre outras coisas, tocar o coração das pessoas de alguma forma e provocar emoções, sem imagens ou efeitos especiais colocados numa tela. Todo o meu carinho a vocês que acompanham este blog. Até o próximo capítulo!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Coração Atormentado - Capítulo IV



Lembranças



Lino fora pontual. Às sete horas e dez minutos despedira-se dele e de Diego e agora se encontrava a caminho de seu apartamento no bairro Santo Antônio. Estava cansada. Diego não era um paciente fácil, mas tinha grandes chances de superar aquela má fase. Ficara preocupada com as atitudes da noiva e do padrasto que não pareciam ser muito positivas. Ainda precisava saber exatamente qual a altura de sua lesão e a extensão. Talvez houvesse esperanças dele voltar a andar. Conhecia a chefe da enfermagem do Hospital Joaquim Xavier, onde ele estivera internado. Falaria com ela para ter mais informações e talvez conseguisse acesso ao seu prontuário. Afinal ela estava preparando sua tese. Não teria dificuldades em conseguir estes dados. Tentava ocupar sua mente com fatos e deveres, para fugir de alguns sentimentos que foram despertados naquele primeiro contato com Diego. “Ele lembra demais o Tomás...”, pensou enquanto esperava o sinal verde aparecer. Ligou o rádio
para espantar aquelas lembranças e seguiu para casa no fluxo do trânsito.

ÂNGELA


                                                                                
O toque do telefone despertou-a de sua abstração, enquanto revirava a salada em seu prato.
- Alô?
- Filha! Finalmente consegui te achar! – exclamou a voz de sua mãe do outro lado.
- Aconteceu alguma coisa, mãe?
- Sim! Estou com saudades, querida! Você não liga. Ando preocupada com a falta de notícias.
- Desculpe, mãe, mas é que estou envolvida com a minha tese. Além disso, iniciei um novo trabalho hoje.
- Mas você não ia dar um tempo para poder dedicar-se só ao mestrado?
- É... Mas surgiu uma boa oportunidade, que além de tudo pode ajudar na tese.
- Mais um paraplégico? – demonstrou desagrado no seu tom de voz.
- E você como está, mãe? – tentou desviar do assunto que certamente a levaria a uma discussão interminável.
- Preocupada com você. Quando você vai esquecer o que aconteceu, filha?
- Mãe, isto não tem nada a ver. Por favor... É apenas o meu trabalho.
- A Enfermagem tem outras especializações. Por que escolheu exatamente lidar com este tipo de paciente? É claro que tem a ver, sem dúvida.
- E se tiver? É uma maneira que encontrei para aceitar melhor o que houve. É tão difícil de entender?
- Está bem, filha. Não vou incomodá-la com as minhas preocupações. Só quero que você seja feliz novamente... Antes que eu esqueça. Seu irmão deve chegar nos próximos dias. Vem para apresentar a noiva americana. Estou morrendo de curiosidade. Pelas fotos que mandaram, ela é bem bonita.
- Que bom! Estou morrendo de saudades do Gabriel.
- Quando ele estiver para chegar, lhe aviso. Pode ser que então você apareça.
- Mãe... Prometo que vou até aí neste final de semana. Ligo antes avisando, tá bom?
- Está bem, querida. Vou esperar. Sabe como me sinto só desde a morte do seu pai.
- E a tia Lourdes? Não tem lhe feito companhia? – sorriu.
- Aquela chata? Não me deixa parar um minuto. É cinema, lanches na confeitaria, passeios no parque... – começou a rir também – Ela está aqui do meu lado, louca para falar com você. Vou passar para ela. Um beijo, filha!
- Beijo, mãe!
- Ângela? Oi, querida! Como você está? Trabalhando muito? – a voz da irmã de seu pai e melhor amiga de sua mãe era doce e musical e a fazia lembrar sua infância quando cuidava dela e de seu irmão mais velho, Gabriel, enquanto seus pais cumpriam compromissos sociais ou viajavam.
- Oi, Tia Lourdes! Que bom ouvir a sua voz. Está tudo bem com a senhora?
- Mais ou menos... Você sabe que aguentar a Isabel não é fácil. Estas mulheres de meia-idade são um saco!
Ângela podia ouvir sua mãe gargalhando ao fundo e dizendo que a cunhada era da mesma idade. Elas se davam muito bem, mas adoravam brincar que não se suportavam diante dos outros, inclusive dela. Conversaram mais um pouco sobre a vinda de Gabriel, que morava nos Estados Unidos, desde que terminara sua residência em cardiologia pediátrica, há seis anos. Sua última visita à Belo Horizonte tinha sido há três anos. Sua mãe e a tia iam até lá pelo menos a cada seis meses verificar se ele estava bem, sob o pretexto de fazer compras em Chicago.
- Então nós vamos esperá-la, querida. Cuidado com a estrada, viu? – referindo-se ao trecho de 30 quilômetros a percorrer antes de chegar no sítio onde moravam, em Casa Branca, um pequeno povoado na região serrana sul da grande Belo Horizonte – Um beijo, Ângela!
- Um beijo, tia. Até! – desligou quando ouviu o clique do outro lado.
Era sempre bom falar com Tia Lourdes. Ela tinha um alto astral incrível. Parecia estar sempre de bem com a vida e nunca deixava de sorrir ou de ter uma palavra de ânimo a quem necessitasse. Nunca se casara. Segundo sua mãe, ela tinha sido muito apaixonada por um peão da fazenda onde fora criada, mas o pai não permitiu o namoro dos dois e o despediu, proibindo que voltassem a se encontrar. Ela nunca mais falou sobre o assunto. Passou a dedicar-se ao magistério e às crianças da escola onde trabalhava. Depois, foi morar com o irmão Laerte e sua esposa, ajudando a cuidar dos sobrinhos. Mantinha seus cuidados com a família seus cuidados com a família estando, agora, a fazer companhia à Isabel. Era uma pessoa de valor inestimável.
Ângela terminou seu jantar e buscou seu laptop para procurar artigos que pudessem ajudá-la em sua tese. Enquanto lia, não conseguia impedir que sua mente voltasse à casa onde passara o dia, na Cidade Jardim. Lembrava do olhar de Diego e pensava como seria ele antes daquela tragédia, sem toda aquela dor corroendo seu coração. Quando percebeu que sua atenção não estava sendo dada exatamente aos artigos que procurava, resolveu dormir. O dia seguinte a esperava e sabia que não seria fácil. Infelizmente o sono custou a chegar. Os acontecimentos do dia, os olhares e palavras voltavam a afligi-la. Mesmo depois que foi vencida pelo cansaço, sua noite continuou inundada pela presença de Diego, em sonhos confusos e intrigantes.

Não teve tempo de preparar seu café, pois acabou acordando mais tarde do que devia e saiu correndo. Não pegaria muito bem chegar atrasada já no segundo dia de trabalho.
Lino já estava a sua espera.
- Bom dia, Ângela.
- Bom dia, Lino. Como foi a noite?
- Tranquila, mas acho que “alguém” perdeu o sono lá em cima. Ficou com a luz acesa até boa parte da madrugada, pelo menos até as duas horas, que foi a última vez em que passei por lá para ver se estava tudo bem.
-Ele já está acordado?
- Creio que não, pois sempre chama pela campainha, que toca diretamente aqui nesta saleta, ao acordar. Acredito que logo não precisará dos meus serviços à noite, pelo menos foi o que conversamos dias atrás. Vai ser bom, pois nós dois poderemos dividir os dias e eu vou deixar de dormir nesta terrível poltrona-cama. Quem vai precisar de fisioterapia, em breve, serei eu se continuar a passar as noites aqui.
- Bom, então vá descansar. Eu assumo daqui. Vou lavar as mãos, tomar um café para acordar e esperar meu mestre chamar – disse sorridente.
- Como foi seu primeiro dia? Não pudemos nos falar ontem.
- Na medida do possível, foi bom. Só fiquei preocupada com as atitudes da noiva. Ela não parece aceitar nada bem o estado dele. Chegou a me dizer que era melhor ele ter morrido. Não é a toa que ele quer ver ela longe daqui.
- Já notei isso também... O melhor era ela parar de vir aqui, mas isso não compete a nós.
- Tem razão.
- Um bom dia para você, Ângela. Vou indo. Até o final da tarde – despediu-se, pegando sua maleta de mão.
- Tchau, Lino. Até.

Tão logo viu-se sozinha, ela encaminhou-se para a cozinha, não sem antes lançar um olhar para a campainha que deveria tocar logo. Já ia entrar, quando ouviu as vozes de Zica e Clara.
-Viu só? O Dr. Marcelo nem quis saber da mulher do José. A coitada esteve aqui ontem e ele não quis falar com ela.
- Mas o que ela queria?
- Veio de novo implorar para que tirem a queixa contra o marido. Diz que ele é inocente e coisa e tal.
- Esta estória está muito mal contada...
- Pois é...
Ângela deu uma breve tossida e entrou na cozinha. Imediatamente as duas empregadas pararam de falar.
- Bom dia, garotas. Tudo bem? – disfarçou. Não queria que elas percebessem que tinha ouvido a conversa, apesar de terem despertado sua curiosidade. Não apreciava fofocas, mas gostaria de saber um pouco mais sobre o acidente que envolvera seu paciente e a mãe.
- Tudo, dona Ângela.
- Por favor, me chamem de Ângela. Será que tem um cafezinho pronto por aí? Não consegui comer ou beber nada antes de vir para cá.
- Claro. Já vou lhe servir um café quentinho. Não quer tomar um suco ou comer alguma coisa.
- Aceito. Não quero desmaiar quando for ajudar o senhor Diego.
Mal tinha tomado um gole de café e ia comer um sanduíche de queijo feito por Zica, quando ouviu o som estridente da campainha na saleta.
- Bem, o dia começou. Obrigada, D. Zica. Guarde o meu sanduíche, por favor. Assim que tiver uma brecha, volto aqui.
- Claro, querida.

Quando subia as escadas, cruzou com Marcelo, que descia apressado.
- Bom dia – disse com voz gutural e com cara de pouquíssimos amigos.
- Bom dia – respondeu enquanto ele passava reto por ela, negando qualquer possibilidade de conversa. Ficou imaginando se Diego estaria de melhor humor.
Bateu na porta com firmeza e entrou depois de ouvir a permissão dada pela voz rouca de Diego. Porém ao entrar, foi recebida com uma exclamação de contrariedade. Não conseguiu ver seu rosto, pois o quarto estava na penumbra.
- E o Lino? Já foi? – perguntou sem nem ao menos cumprimentá-la.
- Em primeiro lugar, bom dia. Em segundo, sim, ele já foi, pois já passa das oito horas e ele sai as sete – respondeu, enquanto abria as cortinas.
- Deixe-as fechadas – ordenou.
Ela o olhou e, com a claridade que entrava abundante, notou que ele estava sem camisa, tentando erguer-se da cama, cobrindo-se com o lençol.
- Está bem – obedeceu fechando-as rapidamente. Não queria deixá-lo vexado logo cedo – Posso ajudá-lo?
- Não!
- Ao menos, deixe-me alcançar suas roupas. Você consegue vesti-las sozinho?
- Droga!
- Diego, não precisa ficar assim só porque o Lino não está aqui para ajudá-lo. Não precisa ter vergonha. É a minha profissão... Estou acostumada a...
- Não é questão de vergonha – interrompeu-a asperamente – Nunca tive vergonha de meu corpo ou de ficar nu diante de uma mulher...
Ela respirou fundo, percebendo o problema dele.
- Sei que não é fácil esta dependência, mas tente pensar que logo você vai poder fazer tudo isso mais facilmente e sem ajuda. Para isso, a fisioterapia...
- Preciso ir ao banheiro, droga!
- Então, mexa-se! – exclamou, imediatamente trazendo a cadeira própria para realização de necessidades, e colocando-a ao lado da cama. – Venha! Apoie-se nos braços. Você tem força para isso. Já vimos isto ontem.
Aos poucos, ao comando de Ângela, ele começou a aproximar-se da beirada da cama, com a ajuda dos braços. Durante todo o tempo ela tentava fixar-se apenas no seu rosto, já que ele estava completamente nu. Mantinha a expressão impassível para transmitir-lhe confiança, e ele estava começando a corresponder aceitando sua ajuda.
- Isso mesmo – continuou incentivando-o – Apóie-se em mim e jogue o corpo sobre a cadeira... Assim!
Logo que ele conseguiu sentar, ela o empurrou até o banheiro, que já estava adaptado às necessidades de um cadeirante. É impressionante o que o dinheiro pode fazer em pouco tempo, pensou.
- Segue sozinho daqui em diante?
- Sim – respondeu aborrecido.
- Se precisar de mim, estarei do outro lado da porta.
Ela podia ouvi-lo quando se deslocou até a pia para fazer a higiene. Sentindo que ele estava conseguindo se virar sozinho, foi até o armário e pegou roupa íntima, meias e um abrigo esportivo para vesti-lo. Deixou-as sobre a cadeira de rodas normal, travada ao lado da cama, e voltou à porta do banheiro onde os barulhos haviam cessado. Imaginou que ele estava pensando no que faria a seguir, sem sua ajuda.
- Diego, que tal voltar para a cama, descansar um pouco do esforço que fez e esperar pelo café? Vai ser bom treinar mais uma vez este movimento de levantar-se da cadeira para mudar de lugar. Que tal?
Fizeram-se alguns minutos de silêncio, em que Ângela aguardou pacientemente.
- Está bem... – concordou brandamente – Vou sair daqui. Pode abrir a porta?
E foi o que ela fez lentamente. Lá estava ele, coberto por uma toalha de banho, com os cabelos úmidos e olhos baixos. Teve vontade de afagar-lhe a cabeça e... “Pare com isso, Dona Ângela!”, disse a si mesma, endurecendo. Se queria que ele a tratasse como uma profissional, não podia ter este tipo de arroubos. Ao invés de afagar-lhe, saiu da frente da cadeira para dar-lhe passagem, deixando que ele continuasse a dirigir sozinho, coisa que ele já podia fazer perfeitamente bem. Ele foi até a cama e perguntou hesitante:
- Pode me ajudar a deitar novamente?
Prendendo um sorriso que quase lhe escapou ao ouvir o pedido de ajuda, foi até ele e serviu-lhe como apoio para que pudesse deitar. Por um momento, suas faces quase se tocaram e ela pode sentir a respiração ofegante dele em sua pele. Sentiu-se corar e rezou para que ele não percebesse. Cobriu-o com o lençol e acomodou os travesseiros às suas costas o mais rapidamente possível evitando aquele olhar que a analisava intensamente agora. Soltou um breve suspiro e falou determinada:
- Bem, agora que já está acomodado, vou buscar o seu café. Deixei suas roupas sobre a cadeira.
- Obrigado – agradeceu olhando-a firmemente, mas sem a arrogância de antes.
- Não há do quê – respondeu antes de sair do quarto.
Ao voltar, notou que ele conseguira vestir a calça do abrigo. Pode perceber as gotículas de suor no rosto e no peito, a brilhar nas sombras
. Não comentou a respeito. Apenas colocou a bandeja com o café sobre a cama.
- Vou deixá-lo tomando seu café à vontade e volto quando terminar. É só me chamar tocando a campainha.
Quando fez menção de virar-se na direção da porta, ouviu sua voz:
- Fique... Por favor.
Um estranho calor subiu por seu peito, provocando um arrepio em seu pescoço, ao ouvir aquele pedido.
- Quer que eu abra um pouco a cortina?
- Não. Quero que você sente aqui – pediu, apontando para a poltrona que havia ao lado da cama – Já tomou café?
- Na verdade... Não... – estranhou a súbita mudança de comportamento, mas estava agradavelmente surpresa.
- A Zica colocou muita coisa aqui. Pode dividir comigo?
- Obrigada, Diego, mas não. Posso lhe fazer companhia...
- É contra as regras a enfermeira dividir o café da manhã com seu paciente?
- Não é isso... – sorriu nervosa, pois, de repente, ela não sabia como reagir àquela tentativa de aproximação inesperada – Você quer conversar? – continuou, sentando-se no lugar que ele lhe indicara.
Ele a sondava com seus olhos verdes, que pareciam brilhar em meio às sombras do quarto como se fossem os olhos de um grande gato, deixando-a ligeiramente agitada, na defensiva e intrigada com o clima de sedução gerado por ele.
- O que a fez escolher esta profissão? – perguntou enquanto passava manteiga em uma torrada.
- Vai ser um interrogatório para ver se estou apta a continuar aqui? – retrucou alegremente, disfarçando o nervosismo.
- Não, só estou querendo saber o que leva uma jovem como você a querer trabalhar com deficientes físicos.
- Alguém tem que cuidar destes pacientes. Além do mais, gosto de desafios.
- Eu sou apenas mais um desafio, então?
- Digamos que você seja um desafio mais teimoso e arrogante.
- Você já namorou um paraplégico? – disparou a pergunta contra Ângela que se tornou muito séria e desconsertada.
Sentindo as lágrimas aflorarem, agradeceu pela penumbra imposta por Diego, que o impediria de vê-la naquele estado. Pensou na resposta a dar, mas os pensamentos ficaram mais confusos.
- Toquei em algum assunto proibido? – ele continuou, sentindo a tensão que provocara nela.
- Não... De modo algum... Por que acha isso?
- Não sei. Achei que talvez isto explicasse a escolha de seu trabalho. Talvez um desafio que não conseguiu resolver...
“Como ele pode adivinhar estas coisas? Que demônio! Preciso sair daqui...”, desesperava-se, sentindo que não poderia represar o choro por mais tempo.
- Escolhi meu trabalho porque gosto de ajudar pessoas com problemas, como você – tentava esconder o tremor da voz – E acho que realmente o seu problema é muito maior que a paralisia. Só gostaria de saber se você já era assim antes do acidente. Acredito que não. Só uma dor muito grande pode tornar alguém tão insensível, grosseiro e amargo. Mas não pense que vou desistir de procurar o melhor do Diego que existe aí para poder trazê-lo de volta à vida – desabafou, terminando o discurso com um só fio de voz.
Levantou-se da poltrona, diante da expressão surpresa e preocupada de Diego, que já se arrependia de ter feito aquelas perguntas.

DIEGO

Acabara, sem querer, magoando Ângela.Mas antes que pudesse desculpar-se, ouviu-a dizer com a voz embargada:
- Com licença. Vou ver se o Carlos já chegou – e saiu, deixando-o atônito.


Demorei, mas postei, apesar deste capítulo ainda não ter sido encerrrado. Resolvi publicá-lo antes, para não deixar vocês muito ansiosas(rsrsrs). Confesso que além da falta de tempo, tive um ligeiro bloqueio criativo, que já foi sanado. Espero até domingo colocar o final deste capítulo (não da estória, é claro). Espero que estejam gostando. Por favor, comentem. Como sempre digo, a opinião de vocês é super importante para mim.
Beijos, minhas queridas!!
PS: Gostaram das escolhas das personagens? Meus mais sinceros agradecimentos à Cris, que sugeriu a Anne Hathaway para personificar a Ângela. Agora não consigo imaginar ninguém melhor para o papel. Beijão, Cris!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Coração Atormentado - Capítulo III

Já pronta, com os cabelos ainda úmidos presos por um delicado prendedor de cabelo, entrou na casa, dirigindo-se ao quarto de Diego. Precisava conversar com ele e tentar conseguir sua confiança. Já previa que isso não seria fácil, mas não desistiria de tentar. Quando estava próxima a escada, assustou-se ao ouvir uma voz potente fazer-lhe uma pergunta.
- Você é a nova enfermeira?
Era um homem alto, magro, mas forte e elegante, aparentando uns quarenta e poucos anos, com um início de calvície, que era notada devido as grandes entradas nas laterais da testa. O restante do cabelo, com vários fios grisalhos em meio aos castanhos, encontrava-se penteado para trás e fixado com algum tipo de gel. Tinha olhos negros penetrantes, sob sobrancelhas cerradas, que no momento lançavam-lhe um olhar arguidor. Sua presença lhe pareceu ameaçadora.
- Sim... E o senhor, deve ser o padrasto de Diego.
Ele apenas assentiu com a cabeça, mantendo a expressão fechada.
- Muito prazer. Meu nome é Ângela Paes e sou a nova enfermeira, sim – apresentou-se, oferecendo a mão direita em cumprimento.
- Creio que meu enteado havia solicitado um enfermeiro homem – disse, desprezando a mão oferecida e deixando a sensação de “déjavu” na enfermeira.
- Já conversei com Diego, ele já entendeu as razões de minha presença e aceitou.
- Isto é muito inconveniente.
- Não vejo porque, senhor.
- Bem não vou discutir isto com você. Depois me entendo com o Lino – cortou o assunto irritado.
Ângela resolveu não levar adiante a discussão, já que o principal interessado já a aceitara.
- Onde ele está?
- Lino?
- Não. Meu enteado, é claro.
- Está lá em cima, com seu fisioterapeuta – respondeu a contragosto.
“Pelo menos ele parece preocupado com Diego”, pensou Ângela, sentindo-se mal com o modo como o homem a tratara. Mas, de cabeça erguida, seguiu-o, enquanto subia as escadas.
Ao entrarem no quarto, Marcelo pareceu mudar completamente de humor. Saudou Diego alegremente, que pareceu satisfeito em ver o viúvo de sua mãe.
- Então, como está o nosso presidente?
- Presidente de quê, Marcelo? – respondeu com um sorriso tristonho – Um presidente que não consegue ir ao escritório ou participar das reuniões.
- Mas isto pode mudar, não é verdade, Carlos?
- Tenho certeza disso – confirmou o indagado, sorrindo.
- Logo você estará apto a voltar à ativa e presidir a empresa de sua família. Confesso que ando meio perdido naquele escritório. Todos sentem muito a sua falta.
- Quero conversar com você em particular, Marcelo – disse com expressão preocupada – Quero saber como andam os negócios e... As investigações sobre o acidente.
- Bem, já terminei meu trabalho aqui com o nosso atleta. Volto amanhã para continuarmos – interrompeu Carlos, percebendo que pediam a sua retirada.
- Obrigado, Carlos. Até amanhã – respondeu Diego – Pode nos dar licença, enfermeira? – convidou Ângela a retirar-se, com um olhar irônico.
Ele insistia em tratá-la com uma intrusa, ou pelo menos fazê-la sentir-se como tal. Mas, ela fez que não notou e saiu junto com o fisioterapeuta sem dizer uma palavra ou fazer qualquer demonstração de seus sentimentos.

- Que investigação é esta de que ela falou? – perguntou a Carlos, pouco depois de deixarem o quarto.
- É sobre o motorista anterior, um tal de José. Parece que foi ele que danificou os freios do carro onde Diego estava com a mãe. A história é meio complicada. Dizem que o motorista estava apaixonado por Ágata, a mãe de Diego, e quando ela dispensou os serviços dele, deixando-o apenas para servir o marido e a outras tarefas, ele ficou indignado e alterou os freios do carro que ela usava, causando o acidente. Infelizmente, no dia do acidente, Diego resolveu dirigir o carro para a mãe e... Deu no que deu.
- Mas que horror. Eu não sabia de nada disso.
- A família conseguiu abafar o caso na imprensa. Mas sei que o motorista está preso, aguardando as investigações que comprovem a sua culpa. Ele alega ser inocente, mas Marcelo jura que somente ele poderia ter um motivo para acabar com Ágata. E Diego parece determinado a acreditar nisso também. Parece que ele tem uma boa relação com o padrasto.
- É... Eu notei.
- Cuide-se, Ângela. Amanhã estarei de volta. Faça alguns exercícios de alongamento com ele à tarde. Vi que você estava bem atenta durante a sessão de hoje e sei que poderá repeti-los.
- Temos uma consulta com o oftalmologista logo após o almoço. Faremos os exercícios quando voltarmos. Pode deixar. É para isso que estou aqui.
- OK! Até amanhã, então.
- Até amanhã – despediu-se. Fechou a porta atrás de si e ficou aguardando que Marcelo descesse.

Como não foi convidada a sentar-se a mesa pelos donos da casa, Ângela retirou-se depois de deixar Diego acomodado junto à Marcelo.
O almoço transcorria tranquilo, até que Cláudia chegou. Foi clara a perturbação de Diego ao vê-la entrar na saleta onde estavam.
- Olá, rapazes! Pelo jeito cheguei bem na hora. Já que não pude tomar o café da manhã com meu querido noivo, talvez possa almoçar.
- Eu já terminei – disse Diego, secamente.
- Marcelo, você tem que falar com este seu amigo que eu não aguento mais ser tratada desse jeito por ele.
- O que está havendo, Diego? – perguntou Marcelo – Você tem tratado a Cláudia muito mal desde que voltou para casa. Ela não merece este tipo de tratamento.
- Eu já a liberei do nosso compromisso. Não sei por que ela ainda insiste em continuar vindo aqui. Eu sei que ela já tem outro. Então, por que continuar com esta encenação?
- Não sei de onde você tirou esta idéia... Diego, eu continuo gostando de você do mesmo jeito.
- Mentirosa!
- Está bem, crianças. Vamos parar com esta discussão e acalmar-se – Marcelo tentou apaziguar – Sente-se, Cláudia.
- Eu já terminei. Onde está a enfermeira? Quero subir! – falou alto, para ser ouvido por Ângela, que logo estava ao seu lado.
- Estou aqui.
- Leve-me para o quarto.
- Diego, espere, amor... Temos que conversar.
- Ele tem que se preparar para a visita ao oftalmologista logo mais –intrometeu-se Ângela.
- Quem lhe perguntou alguma coisa? – esbravejou Cláudia, claramente irritada com a intervenção da estranha.
- Ela tem razão. Não posso me atrasar. Vamos logo com isso, Ângela – disse aparentemente aliviado com a lembrança de Ângela a respeito da consulta e da qual tinha esquecido.
Ao ouvir se nome ao invés da fria palavra “enfermeira” de antes, sentiu-se um pouco cúmplice de Diego, e esperava que ele também se sentisse assim. Não gostava de intrometer-se na vida íntima de seus pacientes, mas naquele caso, duvidava que a presença desta noiva trouxesse algum benefício ao tratamento. Cláudia tinha alguma coisa de falsa em suas falas e no seu olhar. Esperava estar enganada, mas até lá ficaria ao lado de seu contratante.
Sem dizer nenhuma palavra, subiram ao andar superior. Quando entraram no quarto, Ângela perguntou:
- Você está bem?
- Sim. Por que não estaria?
- Apenas queria saber, pois me preocupo com você. Não precisa ser grosseiro.
- Não estou sendo grosso... Por que se preocupa comigo?
- Você é meu paciente e minha responsabilidade. Preciso de mais motivos?
Ele não respondeu. Continuou a olhar para baixo. Quando ela tornou a empurrar a cadeira na direção do banheiro, ele a interrompeu.
- Me deixe ir sozinho. Ainda posso escovar os dentes sem ajuda.
- Como quiser.
Ficou observando-o girar as rodas da cadeira para deslocar-se até o banheiro da suíte. Não precisaria trocar de roupa, pois Carlos já se ocupara disso antes de sair.
- Estou pronto. Sou todo seu... – disse com ar malicioso ao sair do banheiro.
- É ótimo ouvir isto de um homem – respondeu sorrindo.
- Mesmo que seja de um homem pela metade?
- Senhor Bernazzi, por que não pára com isso? Esta auto-comiseração não vai levar a lugar algum. Por que não baixa essa guarda um pouco.
- É melhor irmos andando ou vou perder a consulta, Senhora Ângela – voltou a ficar carrancudo, tornando a ruga entre as sobrancelhas mais profunda que o normal.
- Concordo. Me permite? – apontou para a cadeira, pedindo licença para empurrá-la.
Ele concordou com um meneio da cabeça e ficou a encará-la, esperando seu próximo movimento.
Quando desciam no elevador, Ângela notou que Cláudia e Marcelo conversavam em voz baixa, num canto da sala. Na posição em que estava Diego não podia vê-los. Assim que perceberam a presença deles descendo, emudeceram e separaram-se rapidamente.
O motorista já os esperava com o carro na entrada da casa. Diego Foi colocado no banco da frente, enquanto Ângela dobrava a cadeira e esperava para que Luís a ajudasse a colocá-la no porta-malas.
Finalmente chegaram à elegante clínica oftalmológica localizada no Bairro Funcionários. Sem trocar palavra alguma com sua acompanhante, Diego teve de esperar poucos minutos para ser atendido. Provavelmente o primeiro horário tinha sido escolha sua, já que a possibilidade de ter que aguardar em meio a outros pacientes era remota. Foi recebido efusivamente pelo Dr. Ayrton, que logo lhe dava a boa notícia, após um exame minucioso, de que seus olhos estavam praticamente intatos. Como tinha dito, ainda no hospital, só precisaria de óculos para leitura. Estava surpreso com a ótima cicatrização de suas córneas. Em momento algum tocou no assunto locomoção. Deu-lhe a receita para fazer os novos óculos e despediu-se, solicitando uma nova revisão em seis meses. Quando estavam para deixar o prédio, já dentro do carro, ouviram uma voz masculina chamando por Diego.
- Ei, cara! – ele aproximou-se correndo do carro, do lado de Diego – Não reconhece mais os amigos?
Ângela sentiu-o retesar-se no assento da frente, incomodado por aquela aparição súbita.
- Oi, Bruno. Tudo bem? Eu não o vi. É por isso que tive que vir a esta clínica.
- Eu também ando com problemas de visão. Deve ser a idade – disse sorridente. – E você? Soube que sofreu um acidente, mas pelo que vejo não foi grave. Temos que nos encontrar para sair – Só então ele notou a presença da mulher vestida de branco no banco de trás e a inércia de Diego, que em outros tempos não estaria num carro com motorista nem tampouco ficaria sentado ao reconhecê-lo. Sua expressão logo se transformou de alegre para preocupada e tornou a perguntar.
- Você está bem, Diego? – olhando de soslaio para Ângela.
- Claro! Está tudo ótimo. Falamos-nos outra hora. Tenho um compromisso logo mais e não posso me atrasar. Até mais! – despediu-se com um sorriso forçado. Sua tensão era clara e certamente isto resultaria em mais uma crise de depressão ou de mau humor ao chegarem em casa.

- Diego... Quer conversar sobre o que aconteceu? – perguntou-lhe, ao voltar para a segurança dos jardins de sua mansão, tentando quebrar o pesado silêncio que os envolvia.
- Por que acha que vou querer conversar com você a respeito disso?
- Por que estou aqui, por que estou disponível, por que quero ajudá-lo, por que posso entender o que está sentindo... Quer mais motivos?
- Como pode entender, se tem suas pernas perfeitas e pode ir e vir para onde bem entende sem precisar de uma babá? – lançou-lhe um olhar frio.
Ela ficou muda por alguns instantes, olhando para as montanhas diante deles, aparentemente buscando uma maneira de expressar sua solidariedade. Voltou a olhar para ele e, após um breve suspiro, disse:
- Tem razão. Talvez eu não possa saber exatamente o que você sente, mas posso ter uma boa idéia do que sente. Já cuidei de muitas pessoas com o mesmo problema que o seu e posso “imaginar” o sentimento de frustração e raiva que o invade. Enfrentar a pena ou piedade no olhar das pessoas que faziam parte de suas relações antes do acidente pode ser um pesadelo. Mas os pesadelos não duram para sempre. Sei que você pode voltar a sonhar sonhos bons. Acredite nisso. Eu vi isto acontecer inúmeras vezes.
- Mas certamente existiram exceções...
- Exceções existem... – falou com voz entristecida, desviando o olhar para a paisagem novamente – como em tudo na vida. Mas vou fazer de tudo para que você não seja uma delas.
A firmeza de suas últimas palavras pareceu atingi-lo de alguma maneira, pois sua expressão abrandou-se e ele ficou por alguns segundos olhando-a pensativo. Porém, passado este tempo, estampou o deboche no rosto e continuou.
- Você não acha que é muito convencida? Você é só uma enfermeira, minha cara. Não tem todo este poder que está sugerindo, sinto lhe informar. Está aqui para empurrar minha cadeira... – parou de soltar farpas quando ela o encarou com um sorriso perturbador.
- Uma hora dessas, você vai parar de querer me humilhar e ofender e então vai ver que a minha ajuda pode ser muito mais que só empurrar a sua cadeira – Olhou adiante, deu um suspiro e continuou logo – Que tal um lanche agora? O seu almoço foi interrompido na metade e deve estar com fome. Vou preparar tudo e poderá comer lá no jardim. Depois terá que fazer alguns exercícios até a hora de Lino chegar. Ai ficará livre de mim... Até amanhã.
Como ele não respondesse ao seu discurso, virou-se e saiu.

“Eles parecem não entender... Perdera tantas coisas de uma hora para outra... Todo o seu mundo, como o conhecia até então, havia desabado. O acidente não o deixara apenas sem o movimento das pernas. Havia perdido seu coração, sua alma,... De repente, pessoas desconhecidas vinham até ele dizer que era possível sobreviver àquele caos e achavam que num estalar de dedos tudo ficaria bem?” Assim pensava Diego logo depois que Ângela saiu. “Esta enfermeira... Podia simplesmente demiti-la e Lino não poderia fazer nada...” Mas havia algo naquela mulher que o intrigava. Apesar de ser apenas seu primeiro dia ali, sentia nela uma força, uma persistência, que não encontrara nas outras. Provavelmente era só uma impressão. Perguntava-se por qual motivo uma mulher jovem e bonita como ela escolhera trabalhar com deficientes físicos, pessoas revoltadas e magoadas com seu triste destino. Com o correr dos próximos dias com certeza quebraria aquela banca de profissional capaz e experiente. Porém, no seu intimo mais profundo, não tinha tanta certeza assim de que queria vê-la desistir como as anteriores. Sentia-se tentado a conhecê-la melhor.


Finalmente consegui acabar o terceiro capítulo. Espero voltar em breve. Beijos!!