sábado, 27 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo VI



Seu voo sairia dentro de trinta minutos. Estava na sala de embarque tentando distrair-se lembrando do comitê de despedida no aeroporto há pouco. Além de seus pais, Roberta e Myriam tinham feito questão de participar  do “bota-fora”. Tinha quase certeza que Beta tinha ido só para conferir se ela estaria usando as roupas que compraram  juntas. Ela obrigara Filipa a renovar praticamente todo seu guarda-roupa.
- Você tem que se arrumar conforme seu novo status, menina! Além de ter ficado financeiramente bem, está sendo reconhecida internacionalmente como historiadora. Quero te ver  “elegantésima! – determinou a amiga conhecida por seu bom gosto ao vestir.
Para a viagem escolhera um jeans escuro, camisa de seda estampada de mangas curtas, um blazer de linho azul-marinho e um elegante casaco de lã cinza. Fora quase arrastada para um cabeleireiro famoso de Porto Alegre, que fez um corte magnífico, deixando seu cabelo castanho claro cortado em camadas que caíam charmosamente sobre seus ombros. Ao se olhar no espelho, antes de sair de casa, quase não se reconheceu. Parecia uma dessas modelos, que costumava ver em revistas no consultório de sua ginecologista. Roberta poderia se dedicar à carreira de estilista, caso a profissão de psicóloga e professora universitária não dessem certo. Estava muito satisfeita com sua transformação visual. Sentia-se mais segura e pronta para enfrentar o Prof. Andries  e quem mais aparecesse. Lembrou-se  do telefonema de Júlio, recebido três dias antes de sua viagem. No último ano, depois da separação, tinham se falado no máximo duas vezes, sempre para uma troca mínima de palavras e para acertar a respeito das poucas coisas que haviam comprado juntos. O rompimento fora de comum acordo, pois perceberam que tinha sido um erro morarem juntos. Aconteceu  após um ano de namoro e menos de quatro meses de convivência no pequeno apartamento no Bom Fim, onde ele já morava antes. De tudo só ficara a saudade da vizinhança com o parque da Redenção. Triste! Nada como conviver com alguém no dia-a-dia para conhecê-lo realmente. Valera pela experiência, para não repeti-la. Tinha certeza que Júlio pensava do mesmo jeito, até que ele deu aquele telefonema. Ele tivera a cara de pau de se oferecer para administrar seus novos bens, além de praticamente se oferecer para uma segunda chance juntos. Nossa! Não sabia que o mercado para os administradores de empresa estava tão mal, pensou Filipa entristecida diante do oferecimento do ex- noivo.

Conferiu mais uma vez seus documentos, os euros, suficientes para táxi e alguma outra despesa extra na chegada, junto com os cartões de crédito, que estavam em sua carteira, e passou a mão sobre a barriga para certificar-se do outro volume que a deixava um pouco desconfortável, apesar de mais segura.
Uma sedosa voz feminina anunciou o embarque imediato dos passageiros com destino a Portugal. Filipa escolhera aquele voo por ser o único direto para a Europa. De Lisboa pegaria uma conexão para Amsterdã. Não gostava da ideia de trocar de avião no Rio ou em São Paulo. Aliás, quanto menos aviões para entrar, melhor.  Trouxera um estoque de Dramin e de um relaxante muscular , indicado por Myriam, para  nocautear a si própria no caminho. A última vez que fizera uma viagem tão longa fora logo que terminou a faculdade e tirou férias na França e na Espanha. Mais de dez horas de voo seguidas não era algo que a deixasse muito feliz.
Repetindo o mantra de “ É super seguro, é super seguro, é super seguro...” e jurando não olhar pela janelinha, entrou na fila de pessoas aparentemente despreocupadas que entregavam seus bilhetes para a última conferencia.
 
Acordou indisposta e com a boca seca. Mesmo tendo conseguido um  inesperado upgrade para a classe executiva e não tendo ninguém  no assento ao seu lado, não conseguia sentir-se a vontade dentro de um avião. Deu uma olhada  no relógio e verificou, com pesar,  que ainda tinha mais de seis horas de voo. Espreguiçou-se o melhor que pode e colocou a mão novamente sobre a barriga. Olhou ao seu redor e, guiada pelo ruído da porta do sanitário, dirigiu a mira para o homem que saía de lá naquele instante. Deu um suspiro de aprovação. Ele parecia um gato se movendo no corredor do avião. Vestia uma calça jeans e uma camiseta preta colada ao corpo. E que corpo... Era forte, alto, cabelos acobreados, ligeiramente revoltos, que lhe davam um charme irresistível. Onde ele estava que eu não tinha visto antes?... Dormindo, sua dãaa! Uma bela distração para suportar a viagem  nas alturas. O rosto de queixo anguloso, com a barba por fazer, que tentava inutilmente ocultar sua covinha, passou ao seu lado, parecendo não vê-la, o que a deixou decepcionada. Também! Devia estar com uma cara horrível,  o que não seria uma surpresa depois de um Dramim , de um  Miosan e quatro péssimas horas de sono forçado e conturbado. A vontade de se ver diante de um espelho e o aperto na bexiga a fez levantar-se. Quando conseguiu colocar-se de pé e iniciar o movimento rumo ao banheiro, o avião sofreu um solavanco. Desequilibrou-se e acabou dando alguns passos para trás. Sentiu bater as costas numa barreira sólida e pensou ter  ido contra um dos bancos.  Uma mão quente e macia pegou seu cotovelo e o “banco” falou com voz  rouca em um português de sotaque carregado.
- Você está bem?
Atrapalhada, virou-se para agradecer a ajuda e quase bateu  no peito do “banco”. Levantou o olhar e perdeu-se dentro de dois olhos azul-escuros, que a fitavam,  meio preocupados, meio divertidos.
O'Neill

- S-sim. – gaguejou. – Obrigada... Estou bem...
Tornou a virar-se na direção do banheiro e seguiu um pouco tonta até lá.  Não saberia dizer se pela turbulência no avião ou pela provocada pelo belo estranho. Por sorte, não estava ocupado. Trancou a porta. Como ele sabe que eu sou brasileira? Ah! Sua idiota! Nós estamos saindo do Brasil...dãaaa... Quando a luz acendeu, ela gemeu ao dar de cara com a mulher no espelho. Os cabelos desgrenhados, os olhos inchados e manchados pela maquiagem  nas pálpebras inferiores e um rubor que tomava conta de suas bochechas. Ai, meu Deus! Que horror! Ele deve ter pensado que eu estou bêbada! , foi seu primeiro pensamento.  Fez xixi, lavou as mãos e o rosto. Escovou os dentes para tirar o amargo da boca. Pegou seu estojo de maquiagem de dentro do saquinho plástico padrão para os produtos de higiene pessoal, exigido pelo regulamento dos aeroportos. Passou um pouco de blush, retocou o rímel e passou um pouco de gloss nos lábios. Recomposta, voltou para o seu lugar, tentando manter o controle ao mandar mensagens para o seu subconsciente de que estava em solo firme... A milhares de pés de altura, mas firme. Sem querer, viu que o “gato” estava sentado duas fileiras atrás dela, também  na classe executiva. Evitou olhar na sua direção para não dar “bandeira”. Pensou em  pedir uma taça de vinho. Se ele a visse bebendo, confirmaria a teoria de que ela era uma bêbada, o que seria constrangedor. Por outro lado, ela não devia se importar tanto com um desconhecido. Chamou a aeromoça para pedir uma taça de vinho branco. Certamente jamais veria aquele homem novamente. 
 
Invisível, O’Neill,  invisível! Alguém a teria ajudado! Só o que faltava se derreter por dois olhos verdes... muito doces... Ela é apenas uma peça útil prá te levar ao que interessa. Apenas isso. Fique frio!  Fechou os olhos e planejou seus próximos passos.
 
Depois da segunda taça de vinho sentia-se menos ansiosa. O álcool a ajudava a esquecer onde estava. Ainda bem que não fazia esse tipo de viagem com frequência ou viraria alcoólatra. Talvez, fosse uma boa ideia ver um filme. Já que esse conforto era oferecido pela empresa, por que não aproveitar? Correu os olhos pela playlist  e viu com prazer que havia uma seleção de filmes clássicos. Ainda tinha pelo menos mais cinco horas  pela frente. Clicou sobre Ladrão de Casaca, um de seus “hitchcocks” preferidos.  Cary Grant estava charmosíssimo, apesar de já ter cinquenta e um anos quando atuou nesse filme. Distraída, não pensou mais no bonitão e no incidente. Quando o jantar começou a ser servido, Filipa quase esquecera que estava dentro de um avião. Realmente a classe executiva da TAP era muito confortável e o serviço muito bom. Escolheu um prato a base de frango e batatas e solicitou uma água mineral para acompanhar.
O restante do voo prosseguiu sem nenhum incidente o que deixou Filipa mais tranquila para pegar a conexão para Amsterdã. Chegaram a Lisboa às duas horas da manhã, horário local. Teria que esperar no aeroporto até às seis horas, quando faria o embarque para a Holanda. A bagagem seguiria direto, o que era uma preocupação a menos. Depois de ir ao toalete, voltou à sala de embarque para aguardar a chamada. Não havia muitas pessoas por ali. Seus olhos procuraram instintivamente pelo homem de camiseta preta, mas não o encontraram. Que pena... Era um belo colírio..., suspirou para dentro.
Acordou assustada com a voz nos autofalantes anunciando o embarque para Amsterdã.  Mais duas horas e meia de viagem! Novamente teve seu upgrade para a executiva, o que a fez sorrir. Não era elitista, mas era muito melhor ter uma crise de acrofobia na classe executiva do que na econômica, sem dúvida alguma. Acomodou-se no assento e esperou que os outros passageiros sentassem. Várias caras novas, na maioria louros de olhos azuis. É... Estava indo para a Holanda. Agora faltava pouco para começar a sua aventura na Europa. Será que conseguiria desvendar o mistério da sua família? Talvez pudesse conseguir ajuda do tal Professor Van Persie. Ele devia ser historiador e poderia saber a respeito de seus ascendentes em Amsterdã ou, pelo menos, indicar alguém que soubesse.
Sua atenção voltou-se para um dos últimos passageiros que entravam  naquele momento. Era ele. Parecia saído de um banho e trocara de camiseta. Ela agora era branca.  Não a olhou quando passou por ela, mas deixou um rastro de um  suave e delicioso perfume amadeirado e másculo. Onde ele se metera, enquanto ela esperava naquela sala desconfortável, cochilando num banco duro? Provavelmente ficara em alguma sala vip. Sabia que algumas delas tinham até chuveiros para seus associados. Talvez conseguisse um privilégio desses em suas próximas viagens. Agora era uma mulher rica, como dizia Myriam. Não pode deixar de rir para si mesma lembrando os comentários das amigas. Que bobagem... Poderia viver com conforto e sem preocupações, desde que soubesse investir bem o dinheiro que sua tia deixara. Tinha os pés no chão e sabia que não podia deixar a nova situação subir à cabeça.
Sentiu-se melhor depois que o avião estabilizou no céu e o zumbido em seus ouvidos desapareceu. O café da manhã foi servido. Tomou um suco de laranja e comeu uma omelete com gosto razoável e um pãozinho com  manteiga. Não tinha ideia de quando seria sua próxima refeição. O Prof. Van Persie dissera em seu último email que alguém ia buscá-la no aeroporto para levá-la ao hotel. Depois se encontrariam  no Museu , no início da tarde.
Após o café, levantou-se para ir ao toalete. Terminada sua higiene, abriu a porta do minúsculo compartimento sanitário e retornou ao seu lugar. Aproveitou o percurso, andando lentamente para verificar onde estava o “gato” do avião. Lá estava ele, mais uma vez sentado duas fileiras atrás da dela, muito circunspecto, provavelmente entretido com alguma leitura. Sorriu de si mesma, por estar pensando em tantas bobagens e voltou a sentar-se. Pelo menos, ele era uma boa  maneira de ocupar o pensamento e deixar de pensar na altura em que estavam.
O voo foi mais rápido do que imaginava, ou pelo menos pareceu. O avião pousou no Aeroporto de Schiphol pontualmente às oito horas e trinta minutos da manhã.
 
Pegou sua bagagem de mão, que consistia de sua bolsa e uma maleta pequena onde levava seu laptop  –  não queria ficar dependente de computadores de hotel ou de cybercafés  –  e alguns sapatos  e bolsas que não couberam na mala. Deu uma última olhada de soslaio para seu companheiro de viagem que continuava sentado em sua poltrona, aparentemente distraído com a vista de sua janelinha. Ele tem um perfil lindo... Tão sério...  Deu um último suspiro disfarçado e seguiu em direção à sorridente aeromoça junto à porta da aeronave, que continuava impecável como se houvesse acabado de chegar,  vinda de uma boa  noite de repouso. Como elas conseguem? Despediu-se e trilhou o longo corredor do finger até encontrar outra simpática moça da TAP,  indicando a saída para a sala de imigração. Após sua identificação e o curto questionário a respeito de quanto tempo ficaria no país e qual a finalidade de sua estadia,  pode ir ao desembarque para pegar sua mala.  Finalmente, de posse de sua bagagem completa, dirigiu-se para a saída. Logo se deparou com  uma placa onde constava o seu nome, erguida por uma moça alta, loura, vestindo um chemisier,  com estampa floral, de mangas cavadas.
- Bom dia! Sou Filipa Vasconcelos. – disse em inglês ao aproximar-se da jovem.
- Bom dia! Seja bem vinda! Meu nome é Dirkje Holf. Sou secretária do Professor Van Persie. Vou levá-la ao seu hotel.
- Ah, sim! Muito prazer, ...Derriki? É assim que diz?
- Sim! – exclamou simpaticamente a sua cicerone. – Vamos?
- Vamos... – Filipa sorriu, enquanto tentava imaginar como se escreveria aquele nome.
Com as malas dentro do carrinho de bagagem do aeroporto, Filipa seguiu “Derriki” até um estacionamento próximo, onde as esperava um Mini Cooper creme, de capota branca. Bagagens acondicionadas, entraram no carro e seguiram para o hotel. Filipa observava maravilhada as ruas da cidade, surpresa com o grande número de bicicletas que substituíam os veículos, os canais repletos de barcos, sendo alguns visivelmente usados como moradia, os prédios antigos, de no máximo quatro andares, de arquitetura impressionante, fachadas de tijolos à vista, grandes janelas, muitos telhados inclinados. Parecia uma cidade de bonecas em tamanho gigante.
 


Em poucos minutos estavam diante do Poet Hotel Amsterdam, próximo a maioria dos museus da cidade, segundo  sua guia. Seguindo a linha arquitetônica da cidade, era um hotel simples, mas muito simpático. Enquanto preenchia sua ficha de hóspede, Dirkje despediu-se de Filipa, combinando que passaria em torno das 14 horas para levá-la ao encontro do professor.




Hainaut, 1326
Quando os primeiros raios de sol invadiram o dormitório, Eduardo levantou-se agilmente do leito, já se sentindo recuperado da longa viagem. Comeria alguma coisa e ordenaria que lhe conseguissem uma montaria. Seria bom cavalgar um pouco para conhecer a região. Talvez tivesse sorte e encontrasse a abusada do dia anterior.
Colocou uma roupa adequada para montar, antes que aparecesse alguém para ajudá-lo. Não gostava que o ajudassem a vestir-se. Sentia-se um inútil. No caminho para a cozinha, encontrou a prima Joana, já determinando os serviços para aquele dia. Ela surpreendeu-se ao vê-lo já de pé, tão cedo.
- Bom dia, Eduardo. Conseguiu descansar?
- Bom dia, Condessa. Tenho o hábito de acordar cedo. Pensei em cavalgar um pouco. O dia parece estar muito agradável para um passeio.
- Claro! É uma ótima ideia. Pena que Guilherme ainda não levantou, caso contrário sei que ele teria muito prazer em acompanhá-lo. Apesar de ele tentar mostrar-se saudável, anda meio adoentado, cansando com facilidade. Vou pedir que sirvam o seu desjejum imediatamente e que lhe preparem nosso melhor cavalo.
- Muito obrigado – agradeceu cortesmente – ... Espero que o conde não tenha nada grave.
- Ele diz que é só a idade. Não quer saber de médicos... – disse Joana, minimizando sua preocupação pela saúde do marido para não inquietar seu convidado.
Surpreendentemente,  Eduardo começava a sentir-se muito à vontade naquele lugar. As pessoas eram muito agradáveis e sem grandes formalidades.
Em pouco menos de meia hora, o seu cavalo já estava pronto para ser montado. Saiu sem destino, tendo recebido apenas orientação de um dos cavalariços.
Após algum tempo, avistou as margens de um rio estreito. Decidiu dar de beber ao seu cavalo, que já demonstrava  sinais de fadiga.  Quando se aproximava, notou a presença de alguém no local. A princípio não pode identificar quem era, pois se encontrava escondido por alguns arbustos.
Chegando mais perto, em silêncio, pode ver o responsável por perturbar seu passeio. Era ela! A camponesa do outro dia. Pensou em surpreendê-la. Desmontou e, sem soltar as rédeas, foi aproximando-se bem devagar para não assustá-la. Infelizmente, sua tática não deu certo. Sem querer acabou por pisar num galho seco, que estalou e denunciou sua presença. Imediatamente, ela se virou para ver quem estava a observá-la e, reconhecendo-o, montou rapidamente em sua montaria, fugindo para longe dele.
Este, por sua vez, não perdeu tempo e, voltando a montar, saiu em perseguição da jovem.
Ele podia ouvir os risos da menina, o que o deixava mais excitado e ansioso por alcançá-la. Ela demonstrava ser uma exímia cavaleira e seu cavalo, muito veloz. Ao voltar, mandaria castigar o cavalariço que o enganara ao lhe dar um cavalo ineficiente como aquele. Como ela podia ter um cavalo mais rápido que o seu? A corrida continuava. Quando pensou que ia emparelhar com ela, adentraram num pequeno bosque e, abruptamente Eduardo foi arrancado de sua montaria e jogado ao chão. Um galho não visualizado durante o seu empenho em alcançá-la, interrompera sua perseguição. A fugitiva  parou de correr e voltou atrás para ver se o rapaz havia se machucado. Olhou-o com expressão preocupada, mas quando percebeu que ele estava vivo, praguejando e caído sobre uma porção de relva macia, desatou a rir e voltou a fugir, aumentando ainda mais a ira de Eduardo. Mais uma vez ela levara a melhor. Desta vez passara dos limites. “Quando eu puser as mãos sobre ela, vai ver...”, esbravejou irritado, tentando levantar-se do chão.
Durante o trajeto de retorno ao castelo, não conseguia tirar aquele rosto e o som de sua risada da cabeça. Mesmo sentindo-se humilhado pela situação a que se submetera e pela insolência da serva, sentia-se atraído por ela, de forma inexplicável. Aqueles olhos azuis não o deixavam em paz.
Não quis almoçar. Encontrava-se mal humorado. Talvez se pudesse praticar um pouco de esgrima, pudesse extravasar a sua irritação e relaxar. Procurou o capitão da guarda, que os acompanhara desde Windsor, com quem criara uma relação de camaradagem. Logo foi armado um pequeno torneio. Eduardo tinha sido muito bem treinado e tinha talento para o combate com espada. Ele sempre fora admirador das artes da guerra e dos torneios entre os cavaleiros. Desde muito cedo ficava atento ao treinamento dos soldados de seu pai e, assim que teve força suficiente para segurar uma espada de verdade, deixando de lado a sua de madeira, começou a treinar com os melhores esgrimistas. Em pouco tempo, dominou a maioria das técnicas de combate. Prometia ser um excelente espadachim, assim que se tornasse adulto e mais forte.
A tarde passou rapidamente. Não viu nem sinal dos “olhos azuis”. Ao entardecer, foi convidado a preparar-se para a recepção de logo mais. Seu camareiro já deixara suas vestes separadas. A movimentação nos salões principais da mansão era grande. Bandejas com uma enorme variedade de delícias gastronômicas eram levadas para o refeitório principal. Arranjos monumentais com flores da região eram colocados sobre mesas e colunas nos diversos espaços. Os músicos já começavam a chegar, carregando flautas, alaúdes, vielas de arco e címbalos, com promessas de uma alegre noitada de cantos e danças.
Quando estava pronto, Eduardo foi aos aposentos de sua mãe, para acompanhá-la até o encontro com os convidados que começavam a chegar.
- Guilherme é impossível! – disse Isabella, com certa irritação – Eu  havia lhe pedido  para ser discreto.
- Não fique irritada, minha mãe. Sei que ele deve ter as melhores intenções e deseja apenas agradar-nos. Acho que vai ser divertido. Estamos afastados da vida social há muito tempo.
- O que deu em você? Nunca foi muito adepto deste tipo de divertimento. Será que está interessado em alguém que virá a este encontro?
- Não, mãe! Claro que não! – respondeu vigorosamente, lembrando que provavelmente quem ele mais quisesse no momento, não poderia estar presente por ser filha de um empregado. Sentiu-se entristecer.
Antes que pudessem continuar sua conversa, um pajem interrompeu-os para avisar que a Condessa solicitava sua presença. Os convidados já aguardavam no grande salão.
- Bem, vamos enfrentar as feras, meu príncipe.
De mãos dadas, numa trégua depois de alguns dias sem se falar, seguiram o jovem, que os levou até a recepção. Mortimer, estrategicamente, os encontrou num dos corredores, aborrecendo Eduardo com sua intromissão e com a reação de sua mãe. Felizmente, ele teve o bom senso de manter-se logo atrás dos dois até entrarem no salão.
Foram recebidos com reverências, como era adequado na presença de uma rainha e seu filho, futuro rei da Inglaterra. Logo Eduardo notou a presença de várias jovens, provavelmente filhas da nobreza local, que o olhavam com admiração. Foi quando ouviu a voz de Guilherme:
- Eduardo, gostaria de apresentá-lo à minha filha, Filipa.
Ao virar-se para cumprimentar sua prima, que ainda não tivera a oportunidade de conhecer, teve uma grande surpresa. A sua frente encontrava-se a bela camponesa, que o deixara atordoado por duas vezes nos últimos dois dias. Despida de seus trajes rústicos, vestida como uma jovem senhora feudal, com os cabelos dourados presos por uma rede adornada por minúsculos brilhantes, presente do mercador  Eustache,  estava mais linda que nunca.
Só conseguiu recuperar a fala quando notou o sorriso malicioso nos lábios de Filipa e ouviu-a dizer:
- Parece que o meu caro primo viu um fantasma.
- Filipa, comporte-se – retrucou o conde, quase concordando com a filha, ao ver a face de espanto demonstrada por Eduardo.
- Não, prima. Não vi um fantasma. Apenas estou fascinado com a sua beleza.
Com este galanteio imprevisto, ele conseguiu tirar o sorriso de Filipa e trocá-lo por um brilho de admiração no seu olhar.
- Com licença, Eduardo. Quero apresentar Filipa ao Conde de Namour e seu filho, que acabaram de chegar.
- Pai, por favor... Pare de querer me arranjar um marido. O Arthur tem só 13 anos.
- De onde você tirou esta ideia, Filipa?
- Ouvi o senhor conversar com a mamãe.
- Bem, mas já está na hora, não acha? Sua irmã gêmea, Margarida, casou no ano passado.
- É, prima... Corres o risco de ficar para tia.
- Se eu fosse o senhor, meu primo, ficaria calado. Ninguém pediu a sua opinião. Crianças não têm direito a dar palpites.
- Quem é criança aqui? – esbravejou Eduardo em tom de voz baixo, não conseguindo evitar o rubor em sua face.
- Calma, meninos. Depois vocês se entendem. Vamos lá, Filipa. Não atormente o seu primo.
Trocaram olhares belicosos, para logo em seguida serem separados por Guilherme, que praticamente arrastou a filha até um homem ricamente vestido, porém muito gordo, de olhar plácido como o de um boi e totalmente deselegante. Ao seu lado, estava uma réplica mirim do pai. Provavelmente, o futuro marido de Filipa, Arthur de Namour. Eduardo não pode deixar de rir ao ver o aspecto de bufão do outro menino. Sentiu o olhar furioso de Filipa ao vê-lo rindo de sua humilhante situação. Eduardo conseguira marcar um ponto a seu favor, finalmente.
Durante o jantar, ele observou o desconforto de Filipa, que fora obrigada pelo pai a sentar-se ao lado de Arthur. Este, por sua vez, não parava de falar e comer simultaneamente, provocando uma desagradável sensação em quem estava próximo a ele. Eduardo ficou quase em frente a ela, em situação provocativa, lançando sorrisinhos de escárnio para o jovem “casal”.
Depois do torturante banquete, ela conseguiu desvencilhar-se de seu pretendente e foi circular livremente pelo salão. Encontrou algumas amigas que aguardavam ansiosamente pelo início do baile. Seus olhares não conseguiam esconder a curiosidade a respeito de Eduardo, que se destacava entre os outros rapazes presentes, tanto por sua beleza e elegância, como por seu potencial como futuro rei.
 
 
(continua...)
 
 
Oi, pessoal!
Parece que o romance está no ar, tanto nos aviões de 2012, como em Hainaut, em 1326...
A história ainda está muito no início. Muita água  vai rolar, tanto no século XXI, como no século XIV.
Agradeço a minha amada Léia, por seu comentário, e a todos que têm curtido, de uma maneira ou de outra o blog e A Cruz de Hainaut.
Um beijo enorme a todos! Até a próxima postagem!
 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo V


O anel de  esmeralda herdado por Filipa



Vieira foi surpreendido pelo beijo na face dado por Filipa, ao despedirem-se na porta do embarque para Porto Alegre.
- Foi um prazer conhecê-la, Filipa. – disse ligeiramente corado.
- O prazer foi meu, Dr. Vieira. Muito obrigada por tudo.
- Provavelmente voltaremos a nos ver, pois ainda faltam alguns detalhes para a transferência dos bens de sua tia.
- Então terei que voltar aqui? – perguntou demonstrando seu agrado pela ideia de retornar a Minas.
- Ou talvez, eu possa ir a Porto Alegre. Às vezes, tenho que viajar para visitar meus clientes.
- Por falar nisso, e o seus honorários?
-Não se preocupe. Sua tia já tinha acertado comigo por esse trabalho, na ocasião em que fez o testamento.
- Bem, eu fico aguardando seu contato. Obrigada por tudo, Dr. Vieira. Até mais!
- Boa viagem, Filipa.

Dois dias depois de sua chegada em Porto Alegre, recebeu um telefonema do Dr. Veira.
Pesaroso, anunciou que o banco mineiro, visitado por eles, havia sido assaltado e que a maior parte dos valores que lá estavam tinham sido levados, inclusive as joias de sua tia.
Após o susto inicial,  Filipa respondeu ao advogado que isso não tinha importância.
- Como? – perguntou ele estarrecido.
- As joias não estavam  lá. – Por um lado sentia-se aliviada, pois seu plano dera certo, mas por outro, o fato vinha reforçar alguns temores.
- Mas você disse para o gerente que deixaria tudo como estava e que esperava que o banco cuidasse bem do seu cofre.
- Disse aquilo de propósito... Desculpe, Dr. Vieira, mas eu menti para o gerente de propósito. Eu tive medo que alguém quisesse me roubar, caso soubesse que eu estava com as joias em meu poder.
- E onde elas estão? – indagou  receoso.
- Estão comigo. Eu as trouxe para Porto Alegre.
Ele desatou a rir do outro lado da linha.
- Não acredito... Ótima sacada, Filipa!... – Ele realmente estava contente com a manobra antirroubo de Filipa.
- Dr. Vieira... – Esperou que ele parasse de rir. – Agora estou preocupada de verdade.
- Por quê?
- Acho que tem alguém procurando alguma coisa que pertencia a Tia Filipa.
- Como assim?
- O senhor me contou que a casa dela foi arrombada quando ela morreu. Na mesma semana, o meu apartamento foi invadido. Agora, o cofre do banco... O que o senhor acha disso?
- Realmente é muita coincidência... Mas isso não explica o porquê do assalto a sua casa. Você não tinha ligação nenhuma com ela até a visita a Ouro Preto. – A preocupação ainda era visível em sua voz, apesar da tentativa de tranquilizar Filipa.
- O senhor tem razão, mas que é uma tremenda coincidência, isso é.
- É... Tome cuidado e fique atenta, Filipa. Tomara que você não tenha razão, mas não custa nada estar alerta.
- Vou ter cuidado. Se o senhor souber de alguma coisa, me avise, por favor.
- Avisarei, com certeza. Até mais, Filipa.
- Até! Uma boa tarde para o senhor.
Com a cabeça cheia de indagações, aproveitou o início da noite para entrar na Internet a procura de informações a respeito de rainhas, princesas ou outras mulheres de nobre estirpe com o nome de Filipa. Não podia ter certeza que tinha sido mesmo uma rainha a doadora da pedra, levando em conta os séculos que poderiam ter passado desde então.  Quanto mais olhava, mais confusa ficava. Até que se lembrou de um professor, colega seu de departamento, que era especialista em Genealogia. Procuraria o professor Lair no  dia seguinte.

Na quinta-feira, como sempre ocorria ao longo daquele primeiro semestre, excetuando a semana em que Filipa viajara para Minas, a três amigas reuniam-se para o almoço no Campus do Vale. Era o dia em que Roberta dava aula de Psicologia para as turmas da Faculdade de Letras, que também funcionavam  no campus. Myriam também dava aulas lá. Por isso haviam determinado que esse seria o dia para se encontrarem e colocarem as fofocas em dia.
- Pensei que nem te encontraria mais por aqui, Pipa. – disse Myriam sarcástica. – Agora é milionária...
- Deixa disso, My! Você sabe que eu adoro dar aula. Além do mais, não estou  mi-lio-ná-ria.
- Não dá bola, Pipa. Ela tá tirando sarro contigo.
Myriam caiu na risada.
 - Até parece que ela não me conhece, Beta!
Roberta fez uma careta e colocou a língua para a amiga e virou-se para Filipa toda animada.
- Estou louca para saber todos os detalhes. Conta tudo, tudo.
- Desembucha, mulher! – arrematou Myriam.
- Não tenho muito que contar. Voltei com muita pena de não ter conhecido essa tia. Ela me deixou uma carta meio que se desculpando por isso. O resto vocês sabem. Ela me deixou alguns imóveis lá em Minas, uma boa quantia em dinheiro e algumas joias.
- Tem mais alguma coisa que você não nos contou. Notei você estranha desde que voltou. O que é? – perguntou Roberta.
- É. Eu também notei que anda meio tristinha pelo telefone. O que foi?
Desde o colégio, elas sempre tinham sido suas melhores amigas e confidentes, por isso acabou por lhes contar as coincidências dos assaltos, a história da esmeralda, suas angustiantes suspeitas e suas tentativas para recuperar a história de sua ascendência. Queria muito descobrir quem era essa Filipa que dera  origem a essa tradição entre as mulheres de sua família.
- Interessante, Pipa... Mas eu concordo com o advogado. Acho que pode ter sido só coincidência essa história de assaltos. Hoje em dia isso está tão comum... – comentou Myriam.
- Não sei não... Talvez a Pipa tenha razão. Eu ficaria com “a pulga atrás da orelha”.
- Pois é...
- Agora, falando sério, Pipa. O que você pretende fazer com esses imóveis lá em Minas.
- Ainda não parei para pensar muito sobre isso. Talvez eu venda ou alugue. Tenho que ver qual é o melhor a fazer. Estou com pena é de vender a casa da minha tia. Se vocês vissem como é linda... Um casarão colonial, no alto de uma daquelas lombas de Ouro Preto, com uma vista linda da cidade.
- Ouvi falar que eles têm muitas pousadas por lá, mas que faltam  hotéis em épocas de alta temporada. Por que não faz uma pousada lá?
- Myriam! Como é que eu vou cuidar de uma pousada?
- Ué! Deve ter um monte de empresário do ramo de turismo interessado nesse tipo de coisa. Você pode alugar o casarão e colocar cláusulas tipo “manter todos os móveis e decoração original”, tipo patrimônio histórico mesmo. Você poderia exigir ter direito a hospedar-se lá sempre que quisesse rever a casa.
Filipa arqueou as sobrancelhas e deu um sorriso tímido.
- Olha que não é má ideia... Vou falar com o Dr. Vieira e ver o que ele acha disso. Puxa, My! Grande ideia! Obrigada!
- Prá que servem as amigas, não é? – falou com ar superior e satisfeito.
Depois disso, o assunto mudou de alvo. Roberta.  As amigas queriam saber mais detalhes sobre o seu simpático namorado e como andava a relação em termos de ciúmes. Os últimos relacionamentos dela tinham sido um desastre graças aos seus ciúmes doentios.
- Até agora, tudo bem. Ele é um amor de pessoa e parece apaixonado. Vocês viram como ele é, no dia do aniversário do Gabriel. – revelou terminando com um suspiro.
- Ai, Beta! Que legal! Vê se não põe tudo a perder. Esse já foi aprovado por nós duas – disse  apontando para Filipa e para ela própria.
Roberta riu.
- Tenho conversado muito sobre isso com o meu analista e acho que vou conseguir. Estou me sentindo mais segura ultimamente.
- Que bom, Beta. Como a My falou, ele está aprovadíssimo.
Os olhares das duas amigas voltaram-se para Filipa na mesma hora.
- Aí, só vai ficar faltando a senhora se ajeitar. – falou Myriam.
- Não achou nenhum mineiro interessante na viagem? Que tal esse Dr. Vieira?
Foi a vez de Filipa cair na gargalhada.
- O Dr.Vieira é um senhor de meia idade, que podia ser meu pai. – contou entre uma risada e outra. – Além disso, depois do Júlio, estou vacinada. Tão cedo não caio noutra... Pelo menos, nada sério.
- Só porque ele virou sapo depois de vocês terem ido morar juntos, não quer dizer que todos os príncipes são assim. – proferiu Roberta.
- Estou bem assim por enquanto. – Olhou para os lados e cochichou, em meio a um sorrisinho maldoso. –Só sexo sem compromisso.
- Uau!!! - exclamou Myriam. – Ai, que inveja!
- Quem ouve, até pensa que é verdade... – riu Roberta. – É que já se passou um ano, Pipa. Tá na hora de dar uma chance prá fila.
- Até parece que tem fila...
- Só você que não vê, menina! Você é super bonita, mas não se valoriza. Agora que recebeu esse dinheiro da sua tia, vai num instituto de beleza, corta o cabelo, compras umas roupas legais...
- Se quiser posso ser a sua consultora de moda e style. – se ofereceu Roberta.
- Tá bom. Vou pensar no assunto.
- Se vocês forem para o shopping, me avisem. Dou um jeito, peço para a minha mãe  ficar com o Gabriel  e vou junto. Não perco isso por nada desse mundo.
As três começaram a rir, chamando a atenção das outras mesas. Era sempre assim quando estavam juntas.

No dia seguinte, quando se preparava para entrar em sua aula da manhã, foi chamada pela secretária da faculdade.
- Recebemos um email dirigido a você, Filipa. É de Amsterdã.
- Amsterdã? Que estranho...
- Eu imprimi. Quer ele agora?
- Sim... Por favor.
A secretária entregou-lhe um envelope branco com o timbre da faculdade.
- Muito obrigada.
Olhou o relógio de pulso e viu que estava em cima da hora para sua aula. Apesar de estar morrendo de curiosidade, teve de refreá-la e deixar para ler a mensagem, com calma, mais tarde.
Quando a aula terminou, foi até o jardim que ficava entre os prédios do campus e calmamente sentou-se para ler o email. Sua próxima turma seria só em trinta minutos.
Abriu o envelope e olhou a folha impressa que lá estava. O email estava em  inglês e o remetente era um  tal de Andries Van Persie, do Museu de História de Amsterdã.

“ Em  nome do Amsterdams Historisch Museum, temos a honra de convidá-la para uma visita ao nosso museu. Ficamos impressionados com o seu artigo, baseado em sua dissertação de mestrado,  a respeito da importância das invenções da Idade Média no mundo atual. Gostaríamos de discutir pessoalmente sobre o assunto.
Aguardamos seu contato para estabelecermos uma data, passagens e acomodações.
Respeitosamente,
Professor Andries Van Persie”
Conservator  van AHM

Isso sim é o que se chama de uma boa notícia, vibrou Filipa. Amsterdã... Exatamente o lugar certo para as investigações sobre a família. E com tudo pago, pelo que subentendera do email. O semestre já estava quase no fim... Será que o convite se manteria de pé até o início do próximo mês? Em seu íntimo estava saltitante. Nunca pensou que aquele artigo publicado num  periódico italiano quase desconhecido pudesse ter tanto alcance e depois de tanto tempo... Dois anos... Não importava. Tinha sido reconhecida como historiadora e era isso o que interessava.

 
1326 - No Condado de Hainaut...
 
Deitado na confortável cama, tentava conciliar o sono. Já era tarde, mas, apesar do cansaço físico, os pensamentos não o deixavam em paz. Lembrava-se de seu pai e de suas últimas palavras antes de partirem para a França.
“Meu filho, não acredite em tudo que falam ao meu respeito. O importante é que saibas que o amo, acima de tudo. Fique atento. São poucos aqueles em quem um rei pode confiar. Atualmente, só confio em você, Eduardo.”
Ainda podia sentir o seu abraço emocionado na despedida...
Infelizmente, apesar de amar seu pai, reconhecia que ele era um fraco. Deixara-se dominar pelo Parlamento e, agora, era dominado pelos Despenser, cujo patriarca mandava e desmandava livremente em seu país. Sua vida eram as festas e as caçadas. 
Durante a viagem, Isabella estivera sondando-o acerca da possibilidade dele assumir o trono real, caso o pai pedisse abdicação de sua coroa. Já deixara bem claro a ela que nada faria sem o consentimento de Eduardo II, seu pai.
Antes de ser vencido pelo cansaço e pelo sono, seus últimos pensamentos avançaram para aquele final de tarde, onde conheceu a misteriosa e  jovem  serva. Ela tinha uma vivacidade e um brilho nos olhos que ele jamais vira entre as damas da corte de Londres. Ansiava por reencontrá-la. Talvez no dia seguinte...

Na estrada para Hainaut, ao cair da tarde daquele dia...

O Verão chegara intenso naquele ano. A falta de chuva deixara as estradas ainda mais poeirentas. Mesmo assim, a paisagem era bela. Os campos, as árvores cobertas por folhas e frutos e suas sombras convidativas, os pequenos riachos que serpenteavam por toda a região. Tudo distraía os olhos do cansado mercador, que antes de tudo, era um apreciador da natureza.
Passara dois dias viajando, vindo de Brugges, a 90 quilômetros de distancia. Os animais  estavam cansados devido ao calor e ao pesado carregamento que lhes afligia no lombo.                              
O calor tornava-se insuportável. Não via a hora de retornar a Calais, onde poderia ficar  alguns dias, enquanto aguardava a nova remessa de fios e outras mercadorias encomendadas pelo conde de Namur. Faria sua entrega e partiria para o sul para atender outros clientes. Hainaut estava próximo. Lá, tinha como freguesa a bondosa Condessa Joana. Guardara para ela os mais lindos brocados e as últimas novidades em botões e rosários de coral feitos pelo pai do seu melhor amigo, Jean d’Aire. Também levava um mimo especial para a jovem Filipa. Esperava que, em breve, essa maratona de viagens tivessem um fim e pudesse ter empregados que fizessem por ele as compras comuns e as entregas fora da cidade. Ficaria em Calais apenas coordenando os negócios. Ainda teria que viajar, mas não com a frequência atual. Teria mais tempo para sua família. Preparava-se para isso há algum tempo. Seus clientes eram exigentes, mas pagavam bem e eram fiéis.
Diante da crescente concorrência, precisava estar sempre a procura de novidades. Pretendia ir a Paris na próxima estação para cuidar disso. Lá sempre encontrava inovações que interessavam seus compradores mais exigentes, principalmente as mulheres. 
Finalmente avistou as muralhas do castelo. Graças a Deus estava chegando antes do anoitecer. Temia os salteadores que viviam a espreita de boas cargas e que preferiam a noite para atacar.  Poderia refrescar-se e descansar para o encontro com a condessa no dia seguinte. Não seria muito desejável para suas vendas encontrar com um cliente no estado em que se encontrava... Roupas cobertas de poeira, fedendo a suor e o rosto cansado. Dirigiu-se para a pequena estalagem onde sempre ficava e onde tinha o seu quarto reservado. Depois de cuidar dos animais e guardar a mercadoria, lavou-se e foi saborear a farta refeição preparada pela esposa de seu amigo estalajadeiro. Após manter uma breve conversa, depois do jantar, pediu licença para retirar-se, a fim de repousar e preparar-se para o dia seguinte.
Eustache estava, então, com 38 anos. Casado com Flora, tinha dois filhos, com dez e oito anos. Conhecera a esposa em uma de suas inúmeras viagens, também na volta de Brugges. Ela era filha de um camponês, que o abrigara, certa vez, durante uma tempestade que o surpreendera próximo a Dunquerque. Era um dia muito frio e a chuva chegara sem aviso, pegando-o desprevenido, no meio da estrada. Achilles e sua família o acolheram bondosamente, cuidando dos animais e salvando sua mercadoria. O bom homem era viúvo e tinha cinco filhos, sendo que três eram mulheres em idade para casar. A mais velha, Flora, logo chamara sua atenção. Por ser a primogênita, acabara por substituir a mãe falecida, sendo a responsável pelo trabalho doméstico e cuidados com os irmãos. Tinha longos cabelos louros ondulados, que costumava prender trançados no alto da cabeça, e olhos cor-de-mel que o enfeitiçaram desde a primeira vez que cruzaram com o seu olhar. Tinha a beleza das jovens camponesas, com a face corada pelo sol, cores adquiridas na lida diária, ajudando a família no campo. Já estava passando da idade de casar, o que a tornava ligeiramente rabugenta, às vezes... Menos com Eustache, a quem tratou docemente desde o primeiro contato.
A casa de Achilles passou a fazer parte de seu roteiro habitual, lá passando para cumprimentar os amigos, deixar mimos e ver Flora mais uma vez.
Ao final de dois anos de visitas mensais, animou-se a pedi-la em casamento, fato já aguardado e muito bem recebido por seu pai, que quase já perdera as esperanças de arranjar um marido para a filha. O casamento realizou-se poucos meses após o pedido formal. Levou-a para morar na casa que dividia com seu pai, também viúvo, em Calais. A rabugice desapareceu e deu lugar a uma mulher satisfeita com sua vida e apaixonada por seu marido. Depois de 12 anos de vida em comum, continuava apaixonado por Flora, que era de uma candura imensa, trabalhadora e companheira fiel.
Repensava em toda sua vida, naquela noite em que o sono custava a chegar, quando chegou a uma decisão, já adiada por muito tempo. Assim que retornasse, contrataria alguém para substituí-lo nas viagens mais longas. Faria uma surpresa para Flora.

Mal o sol irradiou sua luz através das janelas do quarto, Eustache levantou-se animadamente, descansado e pronto para enfrentar o seu dia.
Colocou-se a caminho da residência da condessa, tão logo terminou de colocar as encomendas sobre um dos cavalos. Pretendia partir apenas na manhã seguinte, pois ainda teria algumas visitas a fazer nas proximidades do condado.
Lá chegando, foi informado de que haveria uma festa, naquela noite, em homenagem a rainha da Inglaterra e seu filho, o Príncipe Eduardo, que haviam chegado no dia anterior ao Condado.  Ficou excitado com essa notícia, pois se imaginou fazendo negócios com a “Loba de França”, como era sarcasticamente denominada por seus súditos ingleses.

- Bom dia, Eustache. Trouxe minhas encomendas? – perguntou a bela condessa Joana, que acabara de despedir-se de seu sobrinho, Eduardo, que  sairia para um passeio à cavalo. Apesar do pouco contato que tinham, gostava e admirava o jovem príncipe.
- Como me pediu, senhora. Está tudo aqui e mais algumas novidades para encantá-la um pouco – falou, enquanto descia os fardos do animal. 
- Will, ajude este bom homem com sua carga – Joana dirigiu-se a um dos jovens servos que passava por ali no momento.
- Obrigado, condessa.
Entraram por uma porta lateral, que dava acesso à sala íntima de Joana.  Eustache pode colocar sua carga no chão e começar a abri-la, sob o olhar atento e curioso da condessa.
Depois de entregar-lhe as encomendas, pegou uma pequena caixa feita de couro, que entregou nas mãos da condessa.
- Senhora, este é um pequeno mimo para a sua jovem filha, Filipa. É o meu modo de agradecer-lhe por continuar utilizando os meus serviços. Sou-lhe muitíssimo grato.
- Oh, senhor Eustache, não precisava se incomodar – falou enquanto abria a tampa da embalagem. Ao ver seu conteúdo, uma linda rede para cabelo, soltou uma discreta exclamação de admiração  – Que delicado... Por motivos como este é que o senhor é o meu mercador predileto. Só o senhor para preocupar-se em trazer presentes. Tenho certeza que Filipa vai adorar. Acho que vai querer usar no baile de hoje à noite.
 
(continua...)


Oi, meus leitores preferidos!! O que estão achando? Não sei se estou conseguindo colocar as duas histórias de maneira adequada para a leitura. Sei que ainda deve parecer estranho, mas a medida que o romance de 1326 for rolando, as coisas ficarão mais claras. Se tiverem alguma dúvida, falem por favor. Voces são o meu termometro e se acharem que tem alguma coisa que eu possa melhorar no texto, não deixem de comentar, viram?
Por falar nisso, não posso deixar de dividir com voces algo que me deixou muito feliz no dia de hoje(19/10). Foi a resenha feita pelo escritor e blogueiro, J.R.Viviani, do blog Vendedor de Ilusão, sobre o livro O Corsário Apaixonado. Deixo aqui o link para que voces possam saber a opiniao de J.R., que tem feito um valoroso trabalho divulgando novos autores nacionais, como eu, em seu blog. 
Todo o meu amor e carinho para a Nadja e para a Léia, minhas top comentaristas de sempre. Amo voces (será que eu já disse isso?)!!! :)
Um excelente final de semana para todos!
Beijos!



 
 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo IV


Foi quase impossível resistir à enorme variedade de pães e quitutes da cozinha mineira que estavam dispostos ao longo da mesa do bufê. Como estava acompanhada, Filipa optou  pela parcimônia e decidiu provar  apenas os pães de queijo, que ainda estavam quentes, e uma fatia dourada do bolo de fubá. Escolheu  suco de laranja para beber.
Meio sem jeito, resolveu iniciar a conversa, depois de um gole de seu suco.
- O senhor deve saber que eu não tinha conhecimento da existência de minha tia. Meu pai nunca me falou dela. Por isso fiquei muito surpresa ao saber de sua morte e, principalmente, que eu era sua única herdeira.
- Sua tia tinha vários imóveis em Belo Horizonte, outros aqui mesmo em Ouro Preto, além da casa em que morava, uma soma considerável em poupança, aplicações em ações e alguma joias. Seus tios foram muito ricos, Filipa, mas a doença do Arruda consumiu uma boa parte da fortuna deles em tratamento médico e hospitalizações.
- Não me sinto muito bem em relação a tudo isso. Seria mais fácil se eu a conhecesse. Não sinto que tenha direito a todos esses bens.
-  Era a vontade dela, Filipa.Ela deixou uma carta pessoal para você, além do testamento, que era para ser aberta após a sua morte.
- E onde está? – indagou com os olhos brilhando de curiosidade.
- Aqui comigo. Gostaria de ler agora?
- Prefiro ler quando estiver na casa dela. – Subitamente ficou animada com a possibilidade de conhecer melhor a tia de quem herdara o nome. – Já terminei o meu café. Podemos ir?
Ficou boquiaberta ao constatar que a casa de sua tia era maior que o solar do hotel. Ficava numa esquina, próxima ao centro da cidade. As paredes estavam com a tinta descascando em alguns locais, mas isso não tirava a beleza do prédio em estilo colonial.
- Ela morava sozinha aqui?
- Tinha uma senhora que vinha duas vezes por semana para arrumar a casa. No resto do tempo ela permanecia só.
Dois homens surgiram, vindos do pátio lateral do casario.
- Bom dia! – saudou um deles.
- Bom dia. – saudou Vieira. Filipa ainda se recuperava do susto, tentando não demonstrar sua reação. Depois das histórias de assalto, ficara um pouco temerosa.
- Estes senhores são do cartório local e servirão de testemunhas na leitura e registro do testamento. – explicou Vieira.
- Ah, sim...  – soltou um suspiro disfarçado.
Vieira tirou um molho de chaves do bolso e com uma delas abriu a porta de madeira.
- A casa foi arrombada? – perguntou buscando sinais de tal fato na fechadura nova.
- O vidro da porta da cozinha lá nos fundos foi quebrado e o ladrão conseguiu abrir o trinco por dentro. Tomei a iniciativa de trocar todas as fechaduras da casa. Não sabia se gostaria de ficar aqui, enquanto estivesse na cidade. Essas casas antigas não costumam primar pela segurança.
- Muito obrigada, mas pretendo continuar no hotel.
- Por favor, entre. A casa é sua. – disse ele gentilmente, sorrindo.
Um perfume adocicado de flores murchas invadiu as narinas de Filipa. À medida que Vieira abria as janelas do casarão, os raios de sol expunham a poeira acumulada, em forma de matéria suspensa e animada, e os móveis cobertos por lençóis. Antes de sentarem junto à mesa da sala de jantar, Vieira levou Filipa em um tour pela residência, enquanto ia retirando as coberturas de tecido, expondo a decoração. Mobília antiga, cortinas de voil, com bandôs de renda, que caíam pelas laterais, lampiões de parede e sobre as mesas das salas e dos quartos, coleções de porcelana e cristais que podiam ser vistos sobre aparadores e em cristaleiras de madeira trabalhada.  Porta retratos com fotos de família, inclusive algumas suas, adornavam mesas de canto e a cômoda do quarto que pertencera a seus tios. Filipa sentia-se como se visitando um museu de época da colônia portuguesa. Estava encantada.
- Podemos  ler o testamento agora? Depois a deixarei a vontade para que possa verificar a casa e seus pertences com cuidado.
- Podemos sim. Desculpe...
Depois de acomodados em torno da mesa, Vieira assumiu uma pose mais formal que a adotada normalmente, abriu a sua inseparável maleta de couro marrom e dela retirou uma pasta de papelão verde, onde constava o nome de sua tia em uma etiqueta branca.
Ao final da leitura,  o registro da leitura do testamento foi assinado por Vieira, pelas duas testemunhas e por Filipa.
Os dois funcionários do cartório se despediram e saíram de volta para suas funções normais de trabalho.
Filipa ainda estava imersa em pensamentos, sentada na mesa, quando foi despertada por Vieira.
- Alguma dúvida? – perguntou em tom bem humorado, notando o choque que as quantias  em dinheiro e os bens  de Dona Filipa Vasconcelos Arruda haviam provocado em sua nova cliente.
- Todas... – disse recuperando-se do teor das informações recebidas. – O que eu faço agora?
- O que quiser. É tudo seu...  Para vender, alugar, aplicar, ou o que desejar. Se precisar de conselhos, conte comigo. A propósito, as joias citadas no testamento estão num cofre de banco em Belo Horizonte. Aconselhei sua tia a deixá-las lá por não confiar muito na segurança dos bancos daqui, principalmente quando ela afirmou  que não as usaria mais. Quando voltarmos a Belo Horizonte, eu a levarei até lá. O número da caixa, bem como a chave para abri-la estão em  meu poder. Era para o caso de Dona Filipa esquecer. Ela costumava não dar muito valor às coisas materiais, por isso era um pouco descuidada em relação a isso.
- Ela confiava muito no senhor.
- Como disse, eu era muito amigo do marido dela. – disse visivelmente emocionado. – Nos conhecíamos de longa data.
- Muito obrigada... – agradeceu comovida.
- Vou deixá-la sozinha para que possa pensar e dar uma olhada na casa. Nada foi retirado daqui. A única pessoa que entrou depois da morte de sua tia, além  de mim e dos policiais que fizeram a perícia do local, foi a senhora que costumava faxinar a casa. Eu pedi a ela que arrumasse a desordem  provocada pelo invasor.
- Está bem...
- Eu posso levá-la de volta ao hotel em... Duas horas?
- Se o senhor não se importar, será que posso ficar com a chave? Quando terminar, gostaria de dar uma caminhada pela cidade para espairecer um pouco.
- Estarei a sua disposição.  – Retirou um cartão de um dos bolsos do casaco. – Aqui tem o número do meu celular. Ligue para conversar ou esclarecer suas dúvidas. Caso contrário, estarei amanhã cedo no hotel para que possamos voltar para Belo Horizonte. Iremos ao banco. Lembre-se que nada precisa ser resolvido de imediato. Tudo passará automaticamente para o seu nome. Terá que assinar mais alguns papéis e só. Os imóveis estão com uma administradora, que aguardará o seu comando. Até lá, tudo continuará como está. E, antes que me esqueça, aqui está a carta deixada por Dona Filipa.
- Obrigada, mais uma vez... – Segurou o envelope branco com o seu nome escrito em uma elegante caligrafia cursiva.
Ainda aturdida, despediu-se do competente advogado, voltando o olhar para a carta em suas mãos. Abriu o envelope e retirou uma fina folha de papel.
“Minha querida sobrinha Filipa,
Quando leres essa carta, certamente já não estarei nesse mundo. Uma das poucas mágoas que levo comigo é o fato de não ter  acompanhado de perto o seu crescimento e a sua transformação na bela jovem que é hoje.  Graças a sua mãe, a quem sempre admirei muito, tive a alegria de vê-la através de fotos, ao longo desses anos. Mesmo estando separadas, sempre a imaginei como se fosse minha filha de coração, já que a minha amada Alice se foi desse mundo muito cedo.
Bem, não quero falar de tristezas.
Já deves estar a par de que a deixei como minha única herdeira. É uma pequena demonstração do meu afeto por você. Trocaria todos esses bens materiais  pela convivência junto a ti e aos teus pais.
Outro dos motivos para eu escrever essas linhas é para falar a respeito de uma tradição entre as mulheres de nossa família, especialmente entre as primogênitas de cada geração.  É uma história muito antiga, que data de muitos séculos atrás, quando um de nossos antepassados veio da Holanda,  trazendo consigo uma esmeralda. Essa pedra, segundo o que me foi passado, foi presente de uma rainha ou princesa, de nome Filipa. Segundo a tradição, nosso nome foi dado em homenagem a ela, passando de geração em geração em agradecimento à bondade dessa mulher.  A pedra se tornou uma espécie de talismã de boa sorte para a família. Minha mãe não sabia explicar detalhes, pois datam de muito tempo atrás. Sempre tive curiosidade de me aprofundar um pouco mais na origem dessa tradição, pois certamente os fatos que a geraram devem ter sido muito intensos, a ponto de manter seus reflexos por tanto tempo. Quem sabe, você como historiadora, não consegue reavivar a memória de nossa família?  Não quero ser eu a quebrar laços tão fortes. Por isso deixo com você a incumbência de possuir a esmeralda que deu origem a tudo isso, colocada em um anel algumas gerações atrás,  e, num futuro distante, se assim  desejares,  passá-la para a próxima primogênita, que deverá levar o nome de Filipa, assim como nós duas.
Como último pedido, gostaria que  teu pai,  meu único irmão, Artur, soubesse que nunca deixei de amá-lo e que meus pensamentos nunca o abandonaram. Que ele pense em mim com carinho e sem culpas.
Minha sobrinha, espero que um dia me perdoe por não ter feito parte da sua vida.
Com amor,
Filipa”
Com lágrimas nos olhos, Filipa continuou a fitar a carta onde a letra de sua tia descansava em belos floreios. Gostaria muito de tê-la conhecido. Ainda secando o rosto com a palma da mão, começou a caminhar e olhar com mais cuidado tudo que estava ali. Entristecia-se com a ideia de vender, mas não tinha ideia do que fazer com tudo aquilo. Móveis e utensílios que faziam parte de lembranças de uma vida inteira não deveriam ser descartados com facilidade. Talvez seu pai pudesse orientá-la a esse respeito. 
O resto da manhã, Filipa passou vendo fotos de família,  lembranças de viagens, cartas apaixonadas entre seus tios, onde descobriu que os pais dela, seus avós, não aprovavam o casamento deles, por algumas rixas antigas. Talvez esse fosse um dos motivos da desavença entre seu pai e o tio Arruda. Agora já não importava mais.
Cansada de bisbilhotar, fechou o casario, verificando se todas as portas estavam bem trancadas, e saiu a passear pelas ruas estreitas de Ouro Preto. Não percebeu que dois olhos atentos, por trás de óculos escuros, a observavam.
À tarde, sentou-se numa espécie de lanchonete para comer alguma coisa e, enquanto esperava, abriu a carta da tia para ler mais uma vez. Dessa vez focou o nome da rainha ou princesa que teria dado a pedra para seu antepassado. Filipa. Tinha conhecimento apenas de duas rainhas,  que viveram durante o período da Idade Média, porém  nenhuma delas era holandesa. Uma era inglesa, Filipa de Lencastre, casada com D. João I de Portugal,  e a outra era Filipa de Hainaut, esposa de Eduardo III, da Inglaterra. No entanto, não conseguia lembrar de nenhum episódio onde uma esmeralda teria sido dada a alguém. Como disse sua tia na carta, seria interessante buscar a origem dessa tradição tão arraigada e antiga.
Voltou para o hotel a tempo de presenciar o por do sol atrás das colinas em torno da cidade. Um espetáculo inesquecível.
No dia seguinte, levantou cedo e mais disposta. Decidira investigar a história de Filipa e de seus antepassados. Em sua volta a Porto Alegre começaria sua pesquisa na Biblioteca da UFRGS que tinha convenio com as melhores bibliotecas do mundo.
- Parece que está mais animada hoje, Filipa. – notou Vieira ao chegar na recepção do hotel . – Parece que o passeio pela cidade ontem  lhe fez bem.
- Acho que sim, Dr.Vieira.
Fez seu checkout e partiram de volta a Belo Horizonte.

Quando terminaram os tramites  burocráticos para a abertura de sua conta, Filipa foi levada para o setor de cofres. Ficou impressionada com as medidas de segurança do banco onde as joias de Tia Filipa estavam guardadas. Parecia uma daquelas cenas de filme em que o cliente  é colocado em uma sala privativa para pegar a sua caixa e deixado a sós para satisfazer-se verificando seus valiosos pertences. Foi exatamente o que aconteceu.  A caixa foi trazida pelo gerente e Filipa foi levada até  um cubículo onde havia apenas uma mesa e uma cadeira. Vieira entregou-lhe  a chave e ambos saíram, deixando-a sozinha.
Com cuidado, abriu o recipiente de metal. Lá dentro havia uma espécie de bolsa de veludo retangular. Desdobrou-a duas vezes e prendeu a respiração ao ver seu conteúdo. Entre anéis de brilhante, um colar  e brincos de pérolas e algumas pulseiras e colares de ouro, uma joia se sobressaía. Era um anel de ouro branco com uma enorme esmeralda, retangular, medindo em torno de 4x3 cm,  finamente lapidada e deitada sobre um berço de pequenos brilhantes. Aquela devia, sem dúvida alguma, ser a pedra que a tia citara na carta. Ela era impressionante. Surgiu em sua mente a pergunta de qual teria sido o motivo para uma rainha dar uma pedra daquele quilate a alguém....  Sua curiosidade deu pulos. Enquanto seus olhos observavam as joias dispostas a sua frente pensava onde usaria algo como aquilo.  Seria um risco levá-las para Porto Alegre. Quem lhe garantiria que alguém no próprio banco não saberia que o seu cofre fora esvaziado e desse essa informação para algum bandido? Já vira algo semelhante num filme... Então surgiu uma ideia.
 
Condado de Hainaut
 
 
"Era o verão de 1326, e estavam no condado de Hainaut.
A viagem havia sido longa e cansativa. Eduardo apenas sonhava com o momento em que poderia deitar-se numa cama de verdade e dormir. O sono também o levaria para longe de suas atuais preocupações. Os planos sombrios de sua mãe, Isabella. Não queria acreditar que ela pudesse estar arquitetando algum tipo de hostilidade contra seu pai.  Gostaria de ter o poder de neutralizá-la, antes que o pior acontecesse. Infelizmente, ainda não possuía este tipo de domínio.
Desde que saiu de Windsor, no final do ano anterior, com a desculpa de visitar seu tio Carlos, na França, sua mãe já demonstrara por diversas vezes o desprezo que sentia pelo marido. Inclusive presenciara cenas nada convenientes a uma mulher casada junto ao tal de Mortimer. Como ele odiava aquele homem...
Finalmente avistaram o castelo do primo Guilherme. A pedido de Isabella, Eduardo acompanhou os homens da guarda pessoal até as estrebarias, onde os cavalos seriam alimentados e banhados.
“O que será que ela está tramando agora, para querer me afastar da conversa inicial com o primo?”, mergulhava em pensamentos o jovem príncipe.
Foi quando, entre os cavalos da propriedade, avistou uma jovem esguia, de cabelos dourados, rosto angelical, adornado por lindos olhos azuis, vestida com roupas simples. Ela encontrava-se ao lado de um animal, aparentemente doente, a dedicar-lhe cuidados e palavras carinhosas. Nem notou quando o rapaz aproximou-se do curral onde ela estava, distraída.
- Pobrezinho... Você tem que reagir... Prometo que venho, pessoalmente, dar-lhe uma farta ração, todos os dias – murmurava baixinho, próximo ao ouvido do cavalo, que parecia entender o que a jovem dizia, pois lançava um olhar comovido em sua direção. Apesar disso, as forças pareciam esvair-se do belo espécime.
- O que houve com ele? – perguntou Eduardo, curioso com a cena comovente e ansioso por conhecer melhor a menina.
 Ao ouvir aquela voz rouca e potente, apesar da tenra idade de seu portador, ela estremeceu e soltou uma exclamação assustada. Levantou-se de súbito, com o rosto ruborizado, o que a deixou mais atraente. Fez menção de fugir, mas viu-se encurralada entre o rapaz e a cerca atrás de si.
- Calma! Não precisa ter medo de mim. Apenas fiz uma pergunta. Eu também gosto muito de animais. Ele está doente? – fez a pergunta com cuidado, tentando tranquilizá-la.
A garota pareceu agradar-se do que ouvira. “Se ele gosta de animais, não deve ser má pessoa...”, pensou. Antes de resolver-se a responder, prestou mais atenção na figura que se apresentava diante dela. Ele parecia ter mais ou menos a mesma idade que ela. Era bonito, de traços nobres, alto e elegante, com cabelos escuros ondulados e olhos castanho-claros que a olhavam intensamente e a faziam sentir uma fraqueza nos joelhos, nunca antes percebida. Mas isto, ela não o deixaria perceber.
- É... Ele está doente há três dias. Acho que comeu alguma planta venenosa.
- Que pena... É um lindo espécime – disse, abaixando-se para poder acarinhar o animal. Imaginou que este gesto o aproximaria mais da jovem.
Sentindo-se mais segura, ela voltou a sua posição anterior junto ao enfermo e falou:
- Quem é você? De onde você veio? Eu nunca o havia visto por aqui...
- Meu nome é Eduardo. Venho da Inglaterra. Cheguei a pouco com minha mãe. Somos primos do dono deste castelo. Você trabalha aqui?
Ela sorriu e, com olhar maroto, respondeu:
- Sim. Aqui nas estrebarias.
- Você é muito bonita para ficar aqui no meio dos animais. Deveria estar fazendo companhia a Condessa Joana, no interior do castelo – galanteou, pensando em como poderia conseguir a confiança da bela serva e... Quem sabe? Tinha pouca prática com mulheres, mas muita vontade de compartilhar dos prazeres carnais com elas. Pena esta ser tão jovem e provavelmente sem experiência.
- E você é muito ousado para uma criança – disse ela, soltando uma deliciosa gargalhada.
- Eu não sou criança! – esbravejou Eduardo, sentindo o sangue subir-lhe a cabeça. Pegou-a firmemente pelo braço e continuou – Quem você pensa que é para falar comigo desta maneira? Eu sou o herdeiro do trono inglês e você não passa de uma serva!
Ainda rindo, gostando de ver a reação que provocara no rapaz, conseguiu desvencilhar-se da mão vigorosa que a prendia e falou:
- Herdeiro do rei ou não, isto não lhe dá o direito de me cortejar ao seu bel prazer ou de segurar-me como se eu fosse uma qualquer.
Eduardo estava furioso com o modo como aquela empregada o estava tratando, quando ouviu algumas risadas de outros servos que estavam próximos.
Aproveitando este instante de distração do rapaz, ela o empurrou para trás, fazendo com que ele caísse desajeitadamente sobre as palhas do curral, ao lado do cavalo, e saiu correndo, rindo. Antes que Eduardo pudesse reagir e colocar-se de pé para persegui-la, ela desapareceu como por encanto.
Levantou-se, ainda muito irritado pela arrogância da garota. Olhou para os homens que estavam a rir, com um olhar gélido, que os fez calar.  Porém, logo percebeu o ridículo da situação, mas segurou a vontade de rir de si próprio diante dos serviçais. Achou que estava na hora de encontrar os primos no interior da residência. Sua mãe já tivera tempo suficiente de lançar seus venenos. Realmente estava precisando de um banho e de um bom repouso. Mais tarde daria um jeito de achar aquela atrevida e dar-lhe uma boa lição.

- Ora, ora, não me diga que este é Eduardo? – indagou o Conde de Asvernes, com um sorriso franco, estampado na face rosada e bonachona, ao ver o filho da prima de sua esposa entrar na sala de armas, onde estava reunido com Isabella e Joana, sua esposa. – Venha cá, meu jovem! Deixe-me vê-lo mais de perto. 
Assim que Eduardo aproximou-se para cumprimentar Guilherme formalmente, recebeu um forte abraço deste, o que o deixou deveras surpreso, pois não estava acostumado a este tipo de tratamento na corte. De qualquer maneira, gostou do modo de ser, alegre e franco, do conde.
- Vocês devem estar exaustos. Já estão na estrada há muitos dias. Joana vai mandar preparar-lhes um banho e mostrar seus aposentos. Espero que a sua estada seja benéfica ao corpo e a mente – disse esta última frase olhando mais intensamente para Isabella, que por sua vez, fez que não havia notado a indireta do primo – Descansem, pois amanhã faremos uma pequena recepção em sua homenagem.
- Por favor, Guilherme, não queremos chamar muita a atenção. Acho que já deixei bem claras as minhas intenções enquanto estiver desfrutando de sua hospitalidade.
- Não se preocupe. Não vou interferir nas suas “férias”. Mas não há nada de mal em um pouco de diversão, música e dança. Você não acha, Eduardo?
- Claro, primo, será muito bom  poder ouvir um pouco de música. Estou com saudades das festas promovidas por meu pai no Palácio de Westminster.
- Por favor, sigam-me. Vou levá-los à ala norte, onde ficarão mais confortavelmente acomodados – solicitou Joana aos convidados.
Eduardo ficou tentado, diante do clima de informalidade, a perguntar a respeito da garota das estrebarias, mas resolveu manter silencio e resolver aquilo por sua própria conta.
Após o banho, permaneceu em seu quarto, aceitando apenas uma refeição leve, lá mesmo. Sentia-se muito cansado. Além disso, não tinha vontade de encontrar sua mãe e acabar por discutir mais uma vez a situação de sua família."
(continua...)
 
FELIZ DIA DAS CRIANÇAS!!!
 
Este capítulo incrementado, iniciando a história que se passa na Idade Média, é o meu presente para vocês. Espero que gostem...
Como estão vendo, a partir de agora teremos uma história paralela mostrando as origens da esmeralda que Filipa herdou da tia e que ela ainda não conhece.
Um beijo carinhoso a todos e um ótimo feriado!
 

domingo, 7 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo III

Antes de ir para casa, passou no supermercado para comprar algumas coisas  para o fim de semana. Ao chegar em casa, estranhou  que a chave não girasse suavemente, como sempre, na fechadura. Depois de alguma dificuldade, conseguiu abrir e... Arregalou os olhos e sentiu sua respiração paralisar diante do que encontrou. Alguém havia entrado no apartamento. Tudo estava revirado, gavetas abertas, quadros entortados nas paredes, armários escancarados, tapetes revolvidos no chão. De repente, lembrou que ainda poderia ter alguém ali. Saiu correndo para pedir ajuda ao zelador, rezando para que ele estivesse em casa.
Apertou a campainha insistentemente até que ele abriu a porta.
- Seu  Josué!  Que bom que o senhor está aí. Por favor! Acho que tem alguém na minha casa. Cheguei agora e ela está toda revirada.
Ele  expressou seu espanto e correu para dentro de casa, sem fechar a porta. Filipa ficou atônita, mas logo verificou assustada a causa da fuga do homem. Ele voltou com uma arma na mão.
- Será que é preciso levar isso, seu Josué?
- É mais seguro, dona Filipa. – afirmou tenso e seguiu escada acima. O prédio não tinha elevador e o apartamento de Filipa ficava no segundo andar.
O zelador armado olhou bem antes de entrar, sempre com a arma em punho. Podia-se notar o tremor em sua mão. Certamente ele não estava habituado a carregar aquilo, o que era uma temeridade, caso encontrasse um assaltante nervoso e armado da mesma forma. O bandido com certeza teria mais experiência que o pobre senhor Josué.
- A senhora fica aqui na porta que eu vou entrar e ver se ainda tem alguém ai. – disse heroicamente.
Filipa estava em pânico e admirou-se com a bravura do funcionário que sempre lhe pareceu pacato e cordial.
Durante minutos intermináveis ouviu barulhos de portas abrindo e fechando. A cada um deles seu coração quase saltava pela boca. Só conseguiu respirar aliviada quando viu a figura pálida, mas também mais tranquila de seu zelador surgindo no meio da sala bagunçada.
- Não tem mais ninguém aqui, dona Filipa, mas é melhor chamar a polícia. Eles fizeram uma tremenda de uma bagunça nas suas coisas.
-Tem razão. Vou chamar a polícia.
- Se quiser, pode ligar lá da minha casa. Acho que a senhora não está passando muito bem. – constatou ao vê-la sem cor alguma no rosto, encostada no marco da porta como se fosse perder o equilíbrio e cair no chão a qualquer momento.
- Eu lhe agradeço muito, seu Josué.
Fecharam a porta do apartamento e seguiram para o andar térreo.
Depois de ligar para a polícia, pensou em ligar para alguém que pudesse acompanhá-la. Talvez tivesse que dar queixa na delegacia do bairro e temia que não fosse capaz de fazer isso sozinha. Nada parecido jamais acontecera com ela. Estava com  medo. Não seria capaz de dormir aquela noite em sua casa. Ligar para Júlio? Seria repreendida. Ligar para Myriam? Ela estaria curtindo o final da festa com Gabriel, abrindo presentes. Não seria justo. Da  mesma forma, com Beta e César, que estariam começando a aproveitar a noite, namorando. Só lhe restava o pai. Ele saberia como lidar com isso e a ajudaria se acalmar. Tentaria deixar a mãe de fora.
- Pai? – falou aliviada ao ouvir sua voz e não a de Ivana.
- Oi, minha filha... – Ele já notara a tensão em sua voz. – Aconteceu alguma coisa?
- Pai... Será que o senhor pode vir até aqui, na minha casa?
- Agora?
- Está tudo bem comigo. É que acabei de levar um susto...
- Que tipo de susto, Pipa? Fale, filha!
- Eu fui assaltada. Entraram na minha casa, mas eu não estava... Eu estou bem, estou muito bem... – Filipa não conseguia parar de falar e as lágrimas começaram a correr.
- Calma, filha. Já estou a caminho.
- Já chamei a polícia, pai. – falou soluçando. – Estou na casa do seu Josué, o zelador.
- Estou indo, filha.
Ainda estava chocada com a opinião dos policiais que visitaram seu apartamento. Informaram-na que a perícia só poderia avaliar a invasão de domicílio na segunda ou terça  e que as chances de que isso facilitasse a prisão ou apenas o resgate dos objetos porventura roubados  eram  mínimas.  Artur, apesar de demonstrar sua irritação contra o tipo de comentário do policial, não discutiu, pois tinha noção das dificuldades enfrentadas pela Brigada Militar e as deficiências do sistema.
- Você quer aguardar a perícia?
- Não. Não quero mais ninguém remexendo em minhas coisas.
- Você já viu se levaram algo de valor?
- Não, mas eu não tinha quase nada de valor aqui, pai. As únicas coisas  eram o anel que vocês me deram nos meus quinze anos e o colar e os brincos de pérola que tinham sido da vovó. Fora isso...
Aceitando o desejo da filha, Artur agradeceu aos brigadianos, que se desculparam por não poder ajudar mais, mostrando em seus rostos a tristeza pela impotência em situações como aquela.
Depois de fechar a porta, finalmente a sós com Filipa, Artur a abraçou.
- Quer que eu a ajude a arrumar essa bagunça e ver o que eles levaram? Está bem para fazer isso ou quer voltar amanhã?
- Pode ser agora...
Aos poucos, a casa foi voltando a sua forma original. À medida que Filipa guardava suas roupas e demais pertences nos lugares apropriados, se dava conta de que nada fora levado e esse fato amenizava a dor de saber que alguém  havia mexido em suas coisas, em sua intimidade.  Nem mesmo suas únicas joias haviam sumido. Talvez não as tivessem encontrado, pois estavam escondidas dentro de uma caixinha de música, dada de presente por Myriam em seu aniversário de dezessete anos, no fundo falso de seu sapateiro. Fora isso, era como se alguém estivesse procurando algo e não tivesse encontrado.
Ao fim de quase duas horas, parecia que nada acontecera ali. Igualmente intrigado com os motivos da invasão, Artur convidou Filipa para dormir na sua casa.
- Obrigada, pai, mas prefiro ficar aqui.
- Não acho que seja uma boa atitude, filha. Quem quer que tenha feito isso, pode voltar.
- Acho que eles estavam atrás de joias e dinheiro e, como não encontraram  nada disso, foram embora. Não há motivo algum para voltarem .
- Então, eu durmo aqui.
- Não mesmo, pai. Muito obrigada por tudo, mas já estou bem e aliviada por não ter acontecido nada pior.
- Pior?
- Eles podiam ter ficado com  raiva de não terem achado nada de valor e terem destruído tudo ou feito algum tipo de vandalismo.
Artur olhou para a filha com o cenho franzido.
- Deixar você aqui depois disso não é uma ideia que me agrade.
- Ainda tenho o meu aparelho de vídeo e os meus filmes para ver. A pipoqueira está na cozinha e as pipocas estão loucas para serem estouradas.
Artur sorriu admirado da coragem da filha.  Lembrou que assistir filmes antigos era o programa preferido de Filipa desde sempre.
- Que tal ter a companhia de seu velho pai para curtir uma sessão de cinema com pipocas?
- Pai!
- Você prefere que  eu fique  insone e doente de preocupação?
- Isso é golpe baixo, seu Artur.
- Vou ligar para a sua mãe e avisá-la que vou ficar por aqui.
- Tá bom... O senhor venceu. – Abraçou-o carinhosamente.
Terminado o agitado fim de semana, o sol voltou a brilhar sobre a capital gaúcha, apesar de o frio ter voltado mais intenso. Filipa entrou com um pedido de licença de três dias junto à direção da faculdade, para poder tratar do espólio de sua tia. A passagem de ida e volta foi comprada e Artur combinou com Vieira, o advogado mineiro, a chegada de Filipa em Belo Horizonte na quinta feira, no início da tarde. Ela voltaria na segunda-feira.
Despedidas e recomendações feitas, Filipa partiu na manhã de quinta,  rumo à Belo Horizonte. Chegando ao aeroporto, era aguardada por um motorista que faria o seu transfer para o hotel reservado em Ouro Preto. Para sua surpresa, junto ao motorista, o Dr. Vieira também estava a sua espera.
- É um prazer conhecê-la, senhorita Filipa Vasconcelos.
Era um sujeito agradável,  de meia idade, estatura mediana, fartos cabelos pretos, penteados para trás com algum tipo de fixador, olhar arguto e uma voz tranquilizadora.
- O prazer é meu, Dr. Vieira. – respondeu Filipa atrapalhando-se com sua bagagem de mão e a bolsa ao cumprimentá-lo.
Estava um pouco tonta, resultado dos dois copos de vinho que bebera  durante o voo, para poder encarar com menos ansiedade a viagem de avião. Não era adepta do transporte aéreo. Qualquer coisa que pudesse deixá-la acima de dois metros do solo lhe provocava vertigens.  Identificava-se  muito com o personagem "Scottie",  de Um Corpo que Cai, de Hitchcock, graças a essa fobia em comum.
- Permita que eu a ajude. – disse, pegando a pequena maleta das mãos de Filipa. – Vamos?
A viagem transcorreu tranquila e durante o trajeto, Filipa aproveitou para fazer algumas perguntas ao advogado de sua tia.
- O senhor a conhecia bem?
- Eu era advogado e amigo do Arruda, marido dela. Depois que ele faleceu em 2008, ela voltou a me procurar pouco tempo depois para fazer o seu próprio testamento. Tinha medo de morrer e não ver cumpridos seus desejos. Era uma senhora muito simpática. Eu me preocupava com a insistência dela em continuar sozinha naquele casarão. Ouro Preto já não é a mesma de alguns anos atrás. Muitos bandidos  mudaram para cá e as residências tem precisado de mais segurança.
- Por que o senhor diz isso? Ela morreu de ataque cardíaco, não?
- Sim, mas, segundo a polícia, a casa foi invadida na hora em que ela morreu. Não sabem dizer se antes ou depois que ela faleceu. Há uma forte suspeita de que o coração não tenha resistido quando ela viu a casa sendo assaltada.
Filipe sentiu um mal estar ao ouvir as palavras do Dr. Vieira.
- Meu pai não me falou nada disso. Ele soube?
- Eu contei por alto.  Não quis dar muitos detalhes pelo telefone.
Agora ela podia entender melhor o medo de seu pai de deixá-la sozinha no apartamento naquela  noite. Nunca o vira tão preocupado antes. Certamente não falara sobre o ocorrido com a irmã  para não assustá-la ainda mais. Deu um meio sorriso ao pensar que tinha achado o pai mais falante que nunca no dia do assalto ao seu apartamento. E olhe só o que ele lhe escondera. Olhou mais uma vez para o homem ao seu lado e sentiu medo de formular a próxima pergunta.
- Levaram alguma coisa de valor?
- Esse é o mistério. Reviraram toda a casa, mas aparentemente não levaram  nada, segundo a faxineira que costuma limpá-la.
Filipa engoliu em seco. Era muita coincidência... Olhou pela janela do carro pensativa.
Já era noite quando o carro estacionou diante do hotel. O prédio, branco com janelas pintadas de azul, era um antigo casario de dois andares, bem no centro da cidade. Tudo ali cheirava a história. Podia imaginar mulheres de longos vestidos e homens de casaca passeando por aquelas ruas no início da noite. Podia ouvir os sussurros dos inconfidentes escondidos em algumas daquelas casas conspirando contra a dominação portuguesa.
- O restaurante daqui é muito bom, mas,  se preferir jantar em outro lugar, existe várias opções de restaurantes próximos daqui. – comentou quando entraram na recepção e Filipa foi preencher a ficha de hóspedes. – Vou deixá-la descansar e amanhã pela manhã passo aqui para levá-la a casa de sua tia. Achei que gostaria de conhecer. Lá mesmo poderei ler o testamento que ela deixou.
- Muito obrigada, Dr. Vieira. Acho que vou comer alguma coisa por aqui mesmo. E o senhor? Vai ficar hospedado aqui também?
- Não... – sorriu – Tenho alguns parentes que moram na cidade. Sempre fico hospedado com eles quando preciso vir a Ouro Preto.
- Que bom...
- Então... Até amanhã.  Às nove horas, está bom?
- Sim, claro! Uma boa noite para o senhor.
- Para a senhorita também.
- Por favor, o senhor pode me chamar de Filipa.
- Pois não... Filipa. – E despediu-se com um aceno de cabeça.
Preenchida a sua ficha, foi levada por um rapaz até o seu quarto. As  paredes azul-claro contrastavam com o piso de tabuão escuro. Haviam  mantido  uma decoração simples, como deveria ser no século 18, com uma cama de casal e um armário de madeira encerada mais escura que o piso, uma mesa de cabeceira onde havia um  abajur em forma de lampião. Porém, o melhor de tudo era a vista. Quando Filipa abriu as janelas soltou uma exclamação de extasiamento diante da visão espetacular da cidade, com suas luzes acesas iluminando os declives e elevações onde as casas acumulavam-se, como se  empilhadas umas sobre as outras.
 
 
Acordou com o telefone da mesa de cabeceira tocando. Seu sono tinha sido agitado por pesadelos onde via um homem  todo vestido de preto entrando em sua casa, enquanto ela se escondia no quarto. Ele conseguia encontrá-la e começava a ameaçá-la com uma faca, perguntando por alguma coisa que ela não entendia o que era. Só conseguia ouvir sua própria voz gritando "não sei! ",  enquanto a faca se aproximava de seu rosto. Lembrou que estava no hotel em Ouro Preto e alcançou o fone, levando-o ao ouvido.
- Sim? – perguntou com a voz rouca.
- Bom dia, senhorita. O Dr. Vieira a espera na recepção.
- O quê? Oh! Ah, sim! Muito obrigada. Já vou descer.
Deu um pulo da cama, recriminando-se por ter se esquecido de colocar o alarme no celular para despertar. Que vergonha! Correu para o banheiro. Vestiu um jeans e uma camiseta, pegou sua bolsa e saiu tropeçando pelo corredor. Estava morrendo de fome, pois acabara dormindo sem comer nada, tão cansada que estava com o estresse do avião e a viagem de carro até Ouro Preto. Pensava se daria tempo de tomar o café da manhã. Quando saiu do elevador, logo viu o Dr. Vieira no saguão, sentado em uma das poltronas confortáveis que havia por ali. Não pode nem disfarçar e dar uma chegada ao salão onde serviam o café.
- Bom dia, Dr.Vieira. Desculpe o atraso.
- Não tem  problema. Já tomou seu café?
- Na verdade não, mas...
- Eu a acompanho, se não for incomodo.
- Incomodo algum...
- Podemos conversar sobre o testamento enquanto isso.
- Ótimo!

(continua...)



Esse capítulo foi só para dar um gostinho a mais. Não se acostumem...rsrs.
Beijinhos!!