sábado, 27 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo VI



Seu voo sairia dentro de trinta minutos. Estava na sala de embarque tentando distrair-se lembrando do comitê de despedida no aeroporto há pouco. Além de seus pais, Roberta e Myriam tinham feito questão de participar  do “bota-fora”. Tinha quase certeza que Beta tinha ido só para conferir se ela estaria usando as roupas que compraram  juntas. Ela obrigara Filipa a renovar praticamente todo seu guarda-roupa.
- Você tem que se arrumar conforme seu novo status, menina! Além de ter ficado financeiramente bem, está sendo reconhecida internacionalmente como historiadora. Quero te ver  “elegantésima! – determinou a amiga conhecida por seu bom gosto ao vestir.
Para a viagem escolhera um jeans escuro, camisa de seda estampada de mangas curtas, um blazer de linho azul-marinho e um elegante casaco de lã cinza. Fora quase arrastada para um cabeleireiro famoso de Porto Alegre, que fez um corte magnífico, deixando seu cabelo castanho claro cortado em camadas que caíam charmosamente sobre seus ombros. Ao se olhar no espelho, antes de sair de casa, quase não se reconheceu. Parecia uma dessas modelos, que costumava ver em revistas no consultório de sua ginecologista. Roberta poderia se dedicar à carreira de estilista, caso a profissão de psicóloga e professora universitária não dessem certo. Estava muito satisfeita com sua transformação visual. Sentia-se mais segura e pronta para enfrentar o Prof. Andries  e quem mais aparecesse. Lembrou-se  do telefonema de Júlio, recebido três dias antes de sua viagem. No último ano, depois da separação, tinham se falado no máximo duas vezes, sempre para uma troca mínima de palavras e para acertar a respeito das poucas coisas que haviam comprado juntos. O rompimento fora de comum acordo, pois perceberam que tinha sido um erro morarem juntos. Aconteceu  após um ano de namoro e menos de quatro meses de convivência no pequeno apartamento no Bom Fim, onde ele já morava antes. De tudo só ficara a saudade da vizinhança com o parque da Redenção. Triste! Nada como conviver com alguém no dia-a-dia para conhecê-lo realmente. Valera pela experiência, para não repeti-la. Tinha certeza que Júlio pensava do mesmo jeito, até que ele deu aquele telefonema. Ele tivera a cara de pau de se oferecer para administrar seus novos bens, além de praticamente se oferecer para uma segunda chance juntos. Nossa! Não sabia que o mercado para os administradores de empresa estava tão mal, pensou Filipa entristecida diante do oferecimento do ex- noivo.

Conferiu mais uma vez seus documentos, os euros, suficientes para táxi e alguma outra despesa extra na chegada, junto com os cartões de crédito, que estavam em sua carteira, e passou a mão sobre a barriga para certificar-se do outro volume que a deixava um pouco desconfortável, apesar de mais segura.
Uma sedosa voz feminina anunciou o embarque imediato dos passageiros com destino a Portugal. Filipa escolhera aquele voo por ser o único direto para a Europa. De Lisboa pegaria uma conexão para Amsterdã. Não gostava da ideia de trocar de avião no Rio ou em São Paulo. Aliás, quanto menos aviões para entrar, melhor.  Trouxera um estoque de Dramin e de um relaxante muscular , indicado por Myriam, para  nocautear a si própria no caminho. A última vez que fizera uma viagem tão longa fora logo que terminou a faculdade e tirou férias na França e na Espanha. Mais de dez horas de voo seguidas não era algo que a deixasse muito feliz.
Repetindo o mantra de “ É super seguro, é super seguro, é super seguro...” e jurando não olhar pela janelinha, entrou na fila de pessoas aparentemente despreocupadas que entregavam seus bilhetes para a última conferencia.
 
Acordou indisposta e com a boca seca. Mesmo tendo conseguido um  inesperado upgrade para a classe executiva e não tendo ninguém  no assento ao seu lado, não conseguia sentir-se a vontade dentro de um avião. Deu uma olhada  no relógio e verificou, com pesar,  que ainda tinha mais de seis horas de voo. Espreguiçou-se o melhor que pode e colocou a mão novamente sobre a barriga. Olhou ao seu redor e, guiada pelo ruído da porta do sanitário, dirigiu a mira para o homem que saía de lá naquele instante. Deu um suspiro de aprovação. Ele parecia um gato se movendo no corredor do avião. Vestia uma calça jeans e uma camiseta preta colada ao corpo. E que corpo... Era forte, alto, cabelos acobreados, ligeiramente revoltos, que lhe davam um charme irresistível. Onde ele estava que eu não tinha visto antes?... Dormindo, sua dãaa! Uma bela distração para suportar a viagem  nas alturas. O rosto de queixo anguloso, com a barba por fazer, que tentava inutilmente ocultar sua covinha, passou ao seu lado, parecendo não vê-la, o que a deixou decepcionada. Também! Devia estar com uma cara horrível,  o que não seria uma surpresa depois de um Dramim , de um  Miosan e quatro péssimas horas de sono forçado e conturbado. A vontade de se ver diante de um espelho e o aperto na bexiga a fez levantar-se. Quando conseguiu colocar-se de pé e iniciar o movimento rumo ao banheiro, o avião sofreu um solavanco. Desequilibrou-se e acabou dando alguns passos para trás. Sentiu bater as costas numa barreira sólida e pensou ter  ido contra um dos bancos.  Uma mão quente e macia pegou seu cotovelo e o “banco” falou com voz  rouca em um português de sotaque carregado.
- Você está bem?
Atrapalhada, virou-se para agradecer a ajuda e quase bateu  no peito do “banco”. Levantou o olhar e perdeu-se dentro de dois olhos azul-escuros, que a fitavam,  meio preocupados, meio divertidos.
O'Neill

- S-sim. – gaguejou. – Obrigada... Estou bem...
Tornou a virar-se na direção do banheiro e seguiu um pouco tonta até lá.  Não saberia dizer se pela turbulência no avião ou pela provocada pelo belo estranho. Por sorte, não estava ocupado. Trancou a porta. Como ele sabe que eu sou brasileira? Ah! Sua idiota! Nós estamos saindo do Brasil...dãaaa... Quando a luz acendeu, ela gemeu ao dar de cara com a mulher no espelho. Os cabelos desgrenhados, os olhos inchados e manchados pela maquiagem  nas pálpebras inferiores e um rubor que tomava conta de suas bochechas. Ai, meu Deus! Que horror! Ele deve ter pensado que eu estou bêbada! , foi seu primeiro pensamento.  Fez xixi, lavou as mãos e o rosto. Escovou os dentes para tirar o amargo da boca. Pegou seu estojo de maquiagem de dentro do saquinho plástico padrão para os produtos de higiene pessoal, exigido pelo regulamento dos aeroportos. Passou um pouco de blush, retocou o rímel e passou um pouco de gloss nos lábios. Recomposta, voltou para o seu lugar, tentando manter o controle ao mandar mensagens para o seu subconsciente de que estava em solo firme... A milhares de pés de altura, mas firme. Sem querer, viu que o “gato” estava sentado duas fileiras atrás dela, também  na classe executiva. Evitou olhar na sua direção para não dar “bandeira”. Pensou em  pedir uma taça de vinho. Se ele a visse bebendo, confirmaria a teoria de que ela era uma bêbada, o que seria constrangedor. Por outro lado, ela não devia se importar tanto com um desconhecido. Chamou a aeromoça para pedir uma taça de vinho branco. Certamente jamais veria aquele homem novamente. 
 
Invisível, O’Neill,  invisível! Alguém a teria ajudado! Só o que faltava se derreter por dois olhos verdes... muito doces... Ela é apenas uma peça útil prá te levar ao que interessa. Apenas isso. Fique frio!  Fechou os olhos e planejou seus próximos passos.
 
Depois da segunda taça de vinho sentia-se menos ansiosa. O álcool a ajudava a esquecer onde estava. Ainda bem que não fazia esse tipo de viagem com frequência ou viraria alcoólatra. Talvez, fosse uma boa ideia ver um filme. Já que esse conforto era oferecido pela empresa, por que não aproveitar? Correu os olhos pela playlist  e viu com prazer que havia uma seleção de filmes clássicos. Ainda tinha pelo menos mais cinco horas  pela frente. Clicou sobre Ladrão de Casaca, um de seus “hitchcocks” preferidos.  Cary Grant estava charmosíssimo, apesar de já ter cinquenta e um anos quando atuou nesse filme. Distraída, não pensou mais no bonitão e no incidente. Quando o jantar começou a ser servido, Filipa quase esquecera que estava dentro de um avião. Realmente a classe executiva da TAP era muito confortável e o serviço muito bom. Escolheu um prato a base de frango e batatas e solicitou uma água mineral para acompanhar.
O restante do voo prosseguiu sem nenhum incidente o que deixou Filipa mais tranquila para pegar a conexão para Amsterdã. Chegaram a Lisboa às duas horas da manhã, horário local. Teria que esperar no aeroporto até às seis horas, quando faria o embarque para a Holanda. A bagagem seguiria direto, o que era uma preocupação a menos. Depois de ir ao toalete, voltou à sala de embarque para aguardar a chamada. Não havia muitas pessoas por ali. Seus olhos procuraram instintivamente pelo homem de camiseta preta, mas não o encontraram. Que pena... Era um belo colírio..., suspirou para dentro.
Acordou assustada com a voz nos autofalantes anunciando o embarque para Amsterdã.  Mais duas horas e meia de viagem! Novamente teve seu upgrade para a executiva, o que a fez sorrir. Não era elitista, mas era muito melhor ter uma crise de acrofobia na classe executiva do que na econômica, sem dúvida alguma. Acomodou-se no assento e esperou que os outros passageiros sentassem. Várias caras novas, na maioria louros de olhos azuis. É... Estava indo para a Holanda. Agora faltava pouco para começar a sua aventura na Europa. Será que conseguiria desvendar o mistério da sua família? Talvez pudesse conseguir ajuda do tal Professor Van Persie. Ele devia ser historiador e poderia saber a respeito de seus ascendentes em Amsterdã ou, pelo menos, indicar alguém que soubesse.
Sua atenção voltou-se para um dos últimos passageiros que entravam  naquele momento. Era ele. Parecia saído de um banho e trocara de camiseta. Ela agora era branca.  Não a olhou quando passou por ela, mas deixou um rastro de um  suave e delicioso perfume amadeirado e másculo. Onde ele se metera, enquanto ela esperava naquela sala desconfortável, cochilando num banco duro? Provavelmente ficara em alguma sala vip. Sabia que algumas delas tinham até chuveiros para seus associados. Talvez conseguisse um privilégio desses em suas próximas viagens. Agora era uma mulher rica, como dizia Myriam. Não pode deixar de rir para si mesma lembrando os comentários das amigas. Que bobagem... Poderia viver com conforto e sem preocupações, desde que soubesse investir bem o dinheiro que sua tia deixara. Tinha os pés no chão e sabia que não podia deixar a nova situação subir à cabeça.
Sentiu-se melhor depois que o avião estabilizou no céu e o zumbido em seus ouvidos desapareceu. O café da manhã foi servido. Tomou um suco de laranja e comeu uma omelete com gosto razoável e um pãozinho com  manteiga. Não tinha ideia de quando seria sua próxima refeição. O Prof. Van Persie dissera em seu último email que alguém ia buscá-la no aeroporto para levá-la ao hotel. Depois se encontrariam  no Museu , no início da tarde.
Após o café, levantou-se para ir ao toalete. Terminada sua higiene, abriu a porta do minúsculo compartimento sanitário e retornou ao seu lugar. Aproveitou o percurso, andando lentamente para verificar onde estava o “gato” do avião. Lá estava ele, mais uma vez sentado duas fileiras atrás da dela, muito circunspecto, provavelmente entretido com alguma leitura. Sorriu de si mesma, por estar pensando em tantas bobagens e voltou a sentar-se. Pelo menos, ele era uma boa  maneira de ocupar o pensamento e deixar de pensar na altura em que estavam.
O voo foi mais rápido do que imaginava, ou pelo menos pareceu. O avião pousou no Aeroporto de Schiphol pontualmente às oito horas e trinta minutos da manhã.
 
Pegou sua bagagem de mão, que consistia de sua bolsa e uma maleta pequena onde levava seu laptop  –  não queria ficar dependente de computadores de hotel ou de cybercafés  –  e alguns sapatos  e bolsas que não couberam na mala. Deu uma última olhada de soslaio para seu companheiro de viagem que continuava sentado em sua poltrona, aparentemente distraído com a vista de sua janelinha. Ele tem um perfil lindo... Tão sério...  Deu um último suspiro disfarçado e seguiu em direção à sorridente aeromoça junto à porta da aeronave, que continuava impecável como se houvesse acabado de chegar,  vinda de uma boa  noite de repouso. Como elas conseguem? Despediu-se e trilhou o longo corredor do finger até encontrar outra simpática moça da TAP,  indicando a saída para a sala de imigração. Após sua identificação e o curto questionário a respeito de quanto tempo ficaria no país e qual a finalidade de sua estadia,  pode ir ao desembarque para pegar sua mala.  Finalmente, de posse de sua bagagem completa, dirigiu-se para a saída. Logo se deparou com  uma placa onde constava o seu nome, erguida por uma moça alta, loura, vestindo um chemisier,  com estampa floral, de mangas cavadas.
- Bom dia! Sou Filipa Vasconcelos. – disse em inglês ao aproximar-se da jovem.
- Bom dia! Seja bem vinda! Meu nome é Dirkje Holf. Sou secretária do Professor Van Persie. Vou levá-la ao seu hotel.
- Ah, sim! Muito prazer, ...Derriki? É assim que diz?
- Sim! – exclamou simpaticamente a sua cicerone. – Vamos?
- Vamos... – Filipa sorriu, enquanto tentava imaginar como se escreveria aquele nome.
Com as malas dentro do carrinho de bagagem do aeroporto, Filipa seguiu “Derriki” até um estacionamento próximo, onde as esperava um Mini Cooper creme, de capota branca. Bagagens acondicionadas, entraram no carro e seguiram para o hotel. Filipa observava maravilhada as ruas da cidade, surpresa com o grande número de bicicletas que substituíam os veículos, os canais repletos de barcos, sendo alguns visivelmente usados como moradia, os prédios antigos, de no máximo quatro andares, de arquitetura impressionante, fachadas de tijolos à vista, grandes janelas, muitos telhados inclinados. Parecia uma cidade de bonecas em tamanho gigante.
 


Em poucos minutos estavam diante do Poet Hotel Amsterdam, próximo a maioria dos museus da cidade, segundo  sua guia. Seguindo a linha arquitetônica da cidade, era um hotel simples, mas muito simpático. Enquanto preenchia sua ficha de hóspede, Dirkje despediu-se de Filipa, combinando que passaria em torno das 14 horas para levá-la ao encontro do professor.




Hainaut, 1326
Quando os primeiros raios de sol invadiram o dormitório, Eduardo levantou-se agilmente do leito, já se sentindo recuperado da longa viagem. Comeria alguma coisa e ordenaria que lhe conseguissem uma montaria. Seria bom cavalgar um pouco para conhecer a região. Talvez tivesse sorte e encontrasse a abusada do dia anterior.
Colocou uma roupa adequada para montar, antes que aparecesse alguém para ajudá-lo. Não gostava que o ajudassem a vestir-se. Sentia-se um inútil. No caminho para a cozinha, encontrou a prima Joana, já determinando os serviços para aquele dia. Ela surpreendeu-se ao vê-lo já de pé, tão cedo.
- Bom dia, Eduardo. Conseguiu descansar?
- Bom dia, Condessa. Tenho o hábito de acordar cedo. Pensei em cavalgar um pouco. O dia parece estar muito agradável para um passeio.
- Claro! É uma ótima ideia. Pena que Guilherme ainda não levantou, caso contrário sei que ele teria muito prazer em acompanhá-lo. Apesar de ele tentar mostrar-se saudável, anda meio adoentado, cansando com facilidade. Vou pedir que sirvam o seu desjejum imediatamente e que lhe preparem nosso melhor cavalo.
- Muito obrigado – agradeceu cortesmente – ... Espero que o conde não tenha nada grave.
- Ele diz que é só a idade. Não quer saber de médicos... – disse Joana, minimizando sua preocupação pela saúde do marido para não inquietar seu convidado.
Surpreendentemente,  Eduardo começava a sentir-se muito à vontade naquele lugar. As pessoas eram muito agradáveis e sem grandes formalidades.
Em pouco menos de meia hora, o seu cavalo já estava pronto para ser montado. Saiu sem destino, tendo recebido apenas orientação de um dos cavalariços.
Após algum tempo, avistou as margens de um rio estreito. Decidiu dar de beber ao seu cavalo, que já demonstrava  sinais de fadiga.  Quando se aproximava, notou a presença de alguém no local. A princípio não pode identificar quem era, pois se encontrava escondido por alguns arbustos.
Chegando mais perto, em silêncio, pode ver o responsável por perturbar seu passeio. Era ela! A camponesa do outro dia. Pensou em surpreendê-la. Desmontou e, sem soltar as rédeas, foi aproximando-se bem devagar para não assustá-la. Infelizmente, sua tática não deu certo. Sem querer acabou por pisar num galho seco, que estalou e denunciou sua presença. Imediatamente, ela se virou para ver quem estava a observá-la e, reconhecendo-o, montou rapidamente em sua montaria, fugindo para longe dele.
Este, por sua vez, não perdeu tempo e, voltando a montar, saiu em perseguição da jovem.
Ele podia ouvir os risos da menina, o que o deixava mais excitado e ansioso por alcançá-la. Ela demonstrava ser uma exímia cavaleira e seu cavalo, muito veloz. Ao voltar, mandaria castigar o cavalariço que o enganara ao lhe dar um cavalo ineficiente como aquele. Como ela podia ter um cavalo mais rápido que o seu? A corrida continuava. Quando pensou que ia emparelhar com ela, adentraram num pequeno bosque e, abruptamente Eduardo foi arrancado de sua montaria e jogado ao chão. Um galho não visualizado durante o seu empenho em alcançá-la, interrompera sua perseguição. A fugitiva  parou de correr e voltou atrás para ver se o rapaz havia se machucado. Olhou-o com expressão preocupada, mas quando percebeu que ele estava vivo, praguejando e caído sobre uma porção de relva macia, desatou a rir e voltou a fugir, aumentando ainda mais a ira de Eduardo. Mais uma vez ela levara a melhor. Desta vez passara dos limites. “Quando eu puser as mãos sobre ela, vai ver...”, esbravejou irritado, tentando levantar-se do chão.
Durante o trajeto de retorno ao castelo, não conseguia tirar aquele rosto e o som de sua risada da cabeça. Mesmo sentindo-se humilhado pela situação a que se submetera e pela insolência da serva, sentia-se atraído por ela, de forma inexplicável. Aqueles olhos azuis não o deixavam em paz.
Não quis almoçar. Encontrava-se mal humorado. Talvez se pudesse praticar um pouco de esgrima, pudesse extravasar a sua irritação e relaxar. Procurou o capitão da guarda, que os acompanhara desde Windsor, com quem criara uma relação de camaradagem. Logo foi armado um pequeno torneio. Eduardo tinha sido muito bem treinado e tinha talento para o combate com espada. Ele sempre fora admirador das artes da guerra e dos torneios entre os cavaleiros. Desde muito cedo ficava atento ao treinamento dos soldados de seu pai e, assim que teve força suficiente para segurar uma espada de verdade, deixando de lado a sua de madeira, começou a treinar com os melhores esgrimistas. Em pouco tempo, dominou a maioria das técnicas de combate. Prometia ser um excelente espadachim, assim que se tornasse adulto e mais forte.
A tarde passou rapidamente. Não viu nem sinal dos “olhos azuis”. Ao entardecer, foi convidado a preparar-se para a recepção de logo mais. Seu camareiro já deixara suas vestes separadas. A movimentação nos salões principais da mansão era grande. Bandejas com uma enorme variedade de delícias gastronômicas eram levadas para o refeitório principal. Arranjos monumentais com flores da região eram colocados sobre mesas e colunas nos diversos espaços. Os músicos já começavam a chegar, carregando flautas, alaúdes, vielas de arco e címbalos, com promessas de uma alegre noitada de cantos e danças.
Quando estava pronto, Eduardo foi aos aposentos de sua mãe, para acompanhá-la até o encontro com os convidados que começavam a chegar.
- Guilherme é impossível! – disse Isabella, com certa irritação – Eu  havia lhe pedido  para ser discreto.
- Não fique irritada, minha mãe. Sei que ele deve ter as melhores intenções e deseja apenas agradar-nos. Acho que vai ser divertido. Estamos afastados da vida social há muito tempo.
- O que deu em você? Nunca foi muito adepto deste tipo de divertimento. Será que está interessado em alguém que virá a este encontro?
- Não, mãe! Claro que não! – respondeu vigorosamente, lembrando que provavelmente quem ele mais quisesse no momento, não poderia estar presente por ser filha de um empregado. Sentiu-se entristecer.
Antes que pudessem continuar sua conversa, um pajem interrompeu-os para avisar que a Condessa solicitava sua presença. Os convidados já aguardavam no grande salão.
- Bem, vamos enfrentar as feras, meu príncipe.
De mãos dadas, numa trégua depois de alguns dias sem se falar, seguiram o jovem, que os levou até a recepção. Mortimer, estrategicamente, os encontrou num dos corredores, aborrecendo Eduardo com sua intromissão e com a reação de sua mãe. Felizmente, ele teve o bom senso de manter-se logo atrás dos dois até entrarem no salão.
Foram recebidos com reverências, como era adequado na presença de uma rainha e seu filho, futuro rei da Inglaterra. Logo Eduardo notou a presença de várias jovens, provavelmente filhas da nobreza local, que o olhavam com admiração. Foi quando ouviu a voz de Guilherme:
- Eduardo, gostaria de apresentá-lo à minha filha, Filipa.
Ao virar-se para cumprimentar sua prima, que ainda não tivera a oportunidade de conhecer, teve uma grande surpresa. A sua frente encontrava-se a bela camponesa, que o deixara atordoado por duas vezes nos últimos dois dias. Despida de seus trajes rústicos, vestida como uma jovem senhora feudal, com os cabelos dourados presos por uma rede adornada por minúsculos brilhantes, presente do mercador  Eustache,  estava mais linda que nunca.
Só conseguiu recuperar a fala quando notou o sorriso malicioso nos lábios de Filipa e ouviu-a dizer:
- Parece que o meu caro primo viu um fantasma.
- Filipa, comporte-se – retrucou o conde, quase concordando com a filha, ao ver a face de espanto demonstrada por Eduardo.
- Não, prima. Não vi um fantasma. Apenas estou fascinado com a sua beleza.
Com este galanteio imprevisto, ele conseguiu tirar o sorriso de Filipa e trocá-lo por um brilho de admiração no seu olhar.
- Com licença, Eduardo. Quero apresentar Filipa ao Conde de Namour e seu filho, que acabaram de chegar.
- Pai, por favor... Pare de querer me arranjar um marido. O Arthur tem só 13 anos.
- De onde você tirou esta ideia, Filipa?
- Ouvi o senhor conversar com a mamãe.
- Bem, mas já está na hora, não acha? Sua irmã gêmea, Margarida, casou no ano passado.
- É, prima... Corres o risco de ficar para tia.
- Se eu fosse o senhor, meu primo, ficaria calado. Ninguém pediu a sua opinião. Crianças não têm direito a dar palpites.
- Quem é criança aqui? – esbravejou Eduardo em tom de voz baixo, não conseguindo evitar o rubor em sua face.
- Calma, meninos. Depois vocês se entendem. Vamos lá, Filipa. Não atormente o seu primo.
Trocaram olhares belicosos, para logo em seguida serem separados por Guilherme, que praticamente arrastou a filha até um homem ricamente vestido, porém muito gordo, de olhar plácido como o de um boi e totalmente deselegante. Ao seu lado, estava uma réplica mirim do pai. Provavelmente, o futuro marido de Filipa, Arthur de Namour. Eduardo não pode deixar de rir ao ver o aspecto de bufão do outro menino. Sentiu o olhar furioso de Filipa ao vê-lo rindo de sua humilhante situação. Eduardo conseguira marcar um ponto a seu favor, finalmente.
Durante o jantar, ele observou o desconforto de Filipa, que fora obrigada pelo pai a sentar-se ao lado de Arthur. Este, por sua vez, não parava de falar e comer simultaneamente, provocando uma desagradável sensação em quem estava próximo a ele. Eduardo ficou quase em frente a ela, em situação provocativa, lançando sorrisinhos de escárnio para o jovem “casal”.
Depois do torturante banquete, ela conseguiu desvencilhar-se de seu pretendente e foi circular livremente pelo salão. Encontrou algumas amigas que aguardavam ansiosamente pelo início do baile. Seus olhares não conseguiam esconder a curiosidade a respeito de Eduardo, que se destacava entre os outros rapazes presentes, tanto por sua beleza e elegância, como por seu potencial como futuro rei.
 
 
(continua...)
 
 
Oi, pessoal!
Parece que o romance está no ar, tanto nos aviões de 2012, como em Hainaut, em 1326...
A história ainda está muito no início. Muita água  vai rolar, tanto no século XXI, como no século XIV.
Agradeço a minha amada Léia, por seu comentário, e a todos que têm curtido, de uma maneira ou de outra o blog e A Cruz de Hainaut.
Um beijo enorme a todos! Até a próxima postagem!
 

4 comentários:

  1. Aiii Rô a única coisa que peca é o post tão curto... kkk Já estava voando junto com a Filipa e com a cara de Pasma igual do Eduardo quando vejo finalizei a leitura roendo as unhas... kkk Como está incrível esse mix de aconteçimentos o bom que passamos a semana intercalando os pensamentos do que estará por vir nessas aventuras.

    Ps:. Espero ter a mesma sorte de Filipa quando eu for viajar pela primeira vez de avião, português ainda uhmm já estou pisando em nuvens... kkk

    Belissímo post amada Rô!! Beijãoo

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  2. Oi,Léia!
    Pois é... A gente pode encontrar uns tipos bem interessantes dentro de um avião...hehehe... Lendo o teu comentário, acho que passei uma ideia errada quanto à nacionalidade do O'Neill. Ele não é portugues. O sotaque dele era carregado, porque ele é irlandes; mas isso vai ser definido mais tarde quando a Filipa começar a conhece-lo melhor. ;)
    Beijão, minha linda! E muito obrigada pelo teu incentivo!

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  3. Rô amiga!
    Como disse a Leia também estou viajando com a Filipa, adorando esse novo rumo que sua vida está tomando e esse estranho de lindos olhos azuis, ai, ai...acho que teremos muitas emoções nos aguardando nos próximos capítulos, algo assim como mais um encontro inesperado, quem sabe um jantar entre velhos amigos (se conheceram no avião então já podem ser considerados amigos, forçando um pouquinho a barra pra o lado da Filipa!), coisinhas do tipo. Afinal ela merece, simpatizei muito com ela desde as primeiras linhas.
    Adorei também a Filipa nobre, já havia gostado desde quando achei que ela fosse uma camponesa desmiolada, só sendo, tratar um príncipe daquela forma, rsrsrs. Agora então imagino todas as "armadilhas" que você está criando pra esses dois.
    Beijos amiga querida, minha escritora preferida!

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  4. Já é muito bom tomar um banho de loja e de cabeleireiro, imagina ainda se tudo isso ainda tiver por propósito maior uma viagem... e à Amsterdã!!! Nossa, é de ficar nas nuvens!!!
    Realmente, Rô, para se conhecer inteiramente uma pessoa, só mesmo morando sob o mesmo teto, pois isso dá margem a se perceber todas as falhas e virtudes da pessoa, uma vez que é difícil a pessoa ficar fingindo sobre si, seus gostos e atitudes, por muito tempo. Morar juntos requer muita paciência, amor, o exercício diário e constante da generosidade, da fraternidade, da concessão. Esse aí é bem como vc disse no capítulo inicial: um ex-noivo-graças-a-Deus!
    Amiga, mas essa mulher é doida! Tomou dramin, Miosan e ainda vinho?!! Olha, eu tomo dramin para viajar e posso afirmar que é terrível! Ele é um remédio muito para evitar enjôo, contudo a gente fica super abobalhada. A impressão que dá é que a gente tomou um forte sedativo, pois fica até difícil para pensar. Aí, a danada ainda dá de cara com um homem desses! Ploftt!!! Coitada, se fosse eu teria jogado água no rosto umas mil vezes para voltar à realidade... hahahaha...
    Ai, que vontade de viajar para um lugar assim, bem diferente! Novos costumes, novas paisagens e... loiros de olhos azuis... ;) Muito bom!!!
    Adorei a parte de “prédios antigos de no máximo quatro andares”. A minha cidade, Santos, já está ficando repleta de prédios que são verdadeiramente torres, de tão altos. Acho horrível, a gente anda pelas ruas e acaba não tendo mais a visualização do horizonte, do céu em si. Sinceramente, acho que o nosso planeta está super-povoado, está mais do que na hora dos governos partirem para campanhas sérias de controle de natalidade – onde tanta gente vai morar e de que forma, como será a qualidade de vida de todas as pessoas? Só sei que, cada vez mais, há mais gente procriando sem parar e sem pensar nas conseqüências como um todo! As cidades estão ficando vazias de vegetação, não há espaço para o verde – mas como a população irá sobreviver sem ele? Sei lá, às vezes acho que só mesmo uma grande catástrofe mundial faria com que as pessoas abrissem os olhos para a verdade dos fatos e parecem de cobiçar coisas tão infrutíferas, como as que estão buscando na atualidade. Sou mesmo um tanto pessimista à humanidade.
    Voltando aos fatos: eu estou adorando o conto paralelo: Esse encontro de Filipa e Eduardo ainda vai dar o que falar... e bem!!!
    Beijinhos

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Cantinho do Leitor
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