sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo II



- Oi, filhinha! – saudou Ivana ao ver a filha entrar na casa onde moravam  há mais de vinte anos e onde Filipa mantinha as melhores recordações de sua infância e adolescência. – Quem bom te ver! Só assim para você nos visitar... – comentou antes de lhe dar dois beijos, um em cada lado da face.
- Oi, mãe! Não faz nem cinco dias que estive aqui no almoço de domingo.
- É... Eu sei, minha filha. É que morro de saudade de você.
- Ah, mãe... – Emocionada com a declaração espontânea, abraçou-a com força.
Artur apareceu e também a beijou.  Parecia triste.
- O que houve, pai?  Você não parece muito bem.
- Primeiro vamos jantar; depois conversamos.
- Você é quem sabe...  –  resignou-se.
Depois de comer sua sobremesa favorita, a ambrosia feita por sua mãe, Artur pediu que Ivana levasse um cafezinho para eles na sala de estar.
- Estou começando a ficar preocupada. Vai me dizer o que aconteceu ou vai me torturar um pouco mais. – disse enquanto sentava na sua poltrona preferida.
Ivana entrou na sala com a bandeja, equilibrando as três xícaras de cafezinho recém-passado.  Sentindo o clima entre pai e filha e conhecendo como Artur tinha dificuldade em se abrir, resolveu tomar a iniciativa.
- É o seguinte, Pipa. – iniciou lançando um olhar de lado para o marido, estudando sua reação. –  O seu pai tem uma irmã que mora em Minas Gerais. Ou pelo menos tinha...
- Como assim? Eu tenho uma tia e nunca me disseram  nada?
- Nós não nos falávamos há algum tempo...  – comentou Artur.
- Estavam brigados?
- Isso não vem ao caso agora.
- Então, por que está me contando isso agora?
Artur permaneceu em silencio. Semblante fechado, uma tristeza  de lágrimas contidas.
Ivana sentou ao lado dele e passou o braço sobre seu ombro, num gesto de consolo.
- Sua tia faleceu na segunda-feira.
Filipa não sabia o que dizer. Uma irmã de seu pai, de quem nunca ouvira falar, estava morta.
- Sinto muito, pai... Como ela se chamava? Era mais moça ou  mais velha que o senhor?
- Ela se chamava Filipa, como você, e era quatro anos mais velha que o seu pai. – adiantou-se Ivana.
- Ela era casada, tinha filhos?
- Era viúva e não tinha filhos. Ela teve uma menina quando jovem, mas a criança morreu ainda pequena num acidente na fazenda da família. – Sua mãe continuava tomando a palavra em nome do marido.
- Coitada... O senhor vai até Minas para o enterro?
- Ela já foi enterrada. – disse Artur com voz embargada. – O advogado dela cuidou de tudo...
- Bom, então...- disse com uma sensação de estranho vazio no peito. –  Era isso que vocês queriam me contar?
- Tem mais, filha. Você vai ter que ir até Ouro Preto.
- Eu?? Por que? – abismada com a revelação quase derrubou a xícara de café que estava em sua mão.
- Sua tia a deixou como única herdeira no testamento.
Filipa estava boquiaberta.
- Como assim? Ela nem me conhecia...
- Conhecia sim, querida.  Ela estava aqui quando você nasceu. Depois ainda nos visitou mais duas ou três vezes.  – falou Ivana.
- Foi ela quem me pediu para colocar o seu nome de Filipa.  – intrometeu-se Artur.
- Então foi ela a responsável por esse nome “divino”? – Ela sempre achara seu nome esquisito e antiquado. Ficava sem jeito ao dizê-lo, quando perguntada, e aborrecida quando percebia os olhares de sarcasmo ou risinhos camuflados. O pior tinha sido durante a infância, quando era mais cheinha e ganhou o apelido de Pipa. Só aceitou melhor depois que se tornou adulta e adquiriu uma silhueta esbelta e elegante.
- É um nome que passa de geração para geração, pelo que eu saiba, há séculos. Ela me implorou, na época, para que você tivesse o mesmo nome dela. Todas as primogênitas da família sempre receberam esse nome. Como a filha dela morreu e ela não pode mais ter filhos, a herança do nome ficou para você.
- Que ótimo!
- Filha! – censurou-a Ivana.
- Tudo bem... Eu já passei da fase de não suportar o meu nome.
- Voltando ao assunto... Você terá que estar em Ouro Preto, onde ela morava,  na próxima semana, para a leitura do testamento. Você tem direito a uma licença no trabalho para resolver essa questão.
- Que loucura... O senhor vai comigo?
- Infelizmente não, minha filha. Estou no meio de dois processos importantes na firma e não posso me ausentar no momento. O advogado que está encarregado é meu conhecido e muito competente.
Filipa tentava ordenar as centenas de perguntas que tinha na cabeça.
- Ela não tinha outros parentes?
- Não.
- Por que eu? Por que ela não deixou tudo para o senhor que era irmão? Não acha estranho?
- Sua tia era uma boa pessoa, Filipa...  .No entanto, seu pai e ela não se falavam há alguns anos.
- Por quê?
- O marido dela e o seu pai nunca se entenderam. Um dia tiveram uma discussão mais intensa e ela tomou as dores do marido... Com razão.
- Razão nada. Ela não podia ter ficado do lado dele. – exclamou Artur.
- Podia sim, meu bem. Ela gostava muito dele. Aposto que você nem  lembra mais qual foi o motivo da briga. Lembra? – Ivana lançou um olhar indagador ao marido.
Artur levantou irritado do sofá e se dirigiu a filha.
- Filipa, depois eu lhe dou os detalhes. Agora estou um pouco cansado – deu uma olhada fria na direção de Ivana. – e vou me deitar.
Beijou a filha e andou  de cabeça baixa para o corredor que levava ao seu quarto.
Ivana balançou a cabeça enquanto o observava.
- Ele adorava a irmã. Por causa de uma besteira, que ele nem lembra mais, ficaram todos esses anos sem se falar.
- Quantos anos, mãe?
- Acho que foi no seu aniversário de dois ou três anos. Eles sempre vinham lá de Minas para a festa.
- Que pena... Eu gostaria de tê-la conhecido.
Ivana aproximou-se da filha, olhando para a porta por onde Artur havia desaparecido.
- Ele não sabe – cochichou  rindo. – , mas todos esses anos eu sempre mandava uma foto sua na época do aniversário dela e uma cartinha contando os seus progressos.
- Vocês duas se davam bem?
- Sim. Ela era uma pessoa adorável. Foi uma pena o que aconteceu entre ela e o Artur. Essas bobagens de família...
Conversaram mais um pouco e, quando já eram quase dez e meia, Filipa decidiu ir embora, alegando estar cansada, o que não era totalmente mentira. Além do mais, sabia que sua mãe estava preocupada com a reação de Artur e que estava ansiosa por confortá-lo.
Enquanto voltava para casa, lembrou quando seu pai falou a respeito do seu nome ser uma tradição nas primogênitas na família  há séculos. A curiosidade bateu na historiadora que era. Passou a imaginar se não seria possível fazer uma árvore genealógica para chegar à origem de seu nome. Deveria ser algo importante para uma tradição durar tanto tempo. Séculos? Não haveria algum exagero aí? Talvez encontrasse alguma explicação entre as coisas da tia. Ficou triste ao pensar na mulher que acompanhou seu crescimento apenas por fotos, pensando na filha morta tão precocemente.  Malditas brigas de família que afastavam entes queridos, reaproximando-os apenas quando a morte levava um deles.
Acordou com o barulho da chuva batendo forte  nas vidraças. A televisão ainda estava ligada e na tela aparecia o menu do vídeo sobre o cartaz colorido do filme com os personagens principais. A última cena que lembrava era a de Gene Kelly desesperado tentando tirar Judy Garland de uma hipnose provocada por ele.  Quando voltasse do aniversário, o veria novamente. Piscou os olhos e lembrou-se de olhar o relógio. Levantou apressada e foi até a cozinha. O visor do micro-ondas dizia que eram 12:30 horas. Nossa! Que sono! Não imaginava que estivesse tão cansada.  Colocou uma água para ferver e foi até o banheiro. Ainda tinha que comprar o presente do Gabriel.
Preparou  um chá de maçã e canela  e comeu um sanduíche de presunto e queijo. Isso seria suficiente até o momento de entregar-se às delícias do aniversário... cachorrinhos e brigadeiros...Hummm. Seus preferidos.

Myriam estava esvoaçante entre os convidados mirins e seus pais. Quando sentou na mesa onde estavam Filipa e Roberta com o novo namorado, pediu ao garçom um copo de refrigerante e suspirou.
- Mais calma, agora que viu que a festa está cheia de convidados e que o mau tempo não atrapalhou? – perguntou Filipa.
- Ai, Pipa... Eu rezei tanto. Até ovo prá Santa Clara eu botei.
César começou a rir.
- Eu coloquei no jardim lá de casa, César. Controla o teu namorado, por favor, Beta? – atacou bem humorada.
- É que do jeito que você falou... – e desatou a rir.
- César... Te controla... – Roberta deu com o cotovelo no seu braço, mas não conseguiu evitar o sorriso.
- Isso é que dá. A gente convida essa gente desconhecida...  – Myriam voltou a repreende-lo controlando o riso.
O novo namorado de Roberta era um rapaz muito simpático e aparência de bom moço, como costumava dizer dona Sonia, a mãe dela,  sempre esperançosa que a filha conseguisse um bom marido. César logo caira nas boas graças das amigas, Filipa e Myriam, que aprovaram a escolha de Roberta após alguns minutos de conversa, depois das apresentações.
- E você, Pipa? Estou te achando meio tristinha. – comentou Roberta, quando parou de rir.
- Não é nada... Nada que valha a pena contar nesse momento.
- Ih! Agora fiquei preocupada. – exclamou Myriam.  – O que é que aconteceu?
- Tá bom! Se eu não contar já sei que vão ficar pegando no meu pé.
 Com os três de olhos pregados nela, aspirou profundamente e começou a falar.
- É que... Soube ontem, que faleceu uma tia minha, que eu nem sabia que existia. Era irmã de meu pai. Ele está muito abatido com  isso.
- Ele nunca tinha falado dela?
- Pois é. Minha mãe a conheceu. Houve uma espécie de briga familiar e meu pai deixou  de falar com ela. Agora fiquei sabendo disso tudo e que eu sou sua única herdeira.
- Opa! – surpreendeu-se Myriam. – E ela era rica?
- Ah! Não sei, Myriam.  Não estou pensando nisso. Só achei estranho, já que ela mal me conhecia... Com essa eu terei de viajar até Ouro Preto na semana que vem para falar com o advogado.
- Imagina se ficaste milionária? Eu parava na hora de dar aulas e virava dondoca.
- Menos, Myriam... – pediu Filipa meio sem graça pelas considerações da amiga.
- Desculpa, Pipa.
- Mãe! – gritou uma vozinha infantil.
- Oi, filhinho! – saudou quando viu Gabriel chegando no colo de Marco Antonio, seu marido. – E aí? Está gostando da festa?
- A recreacionista está chamando para os parabéns, My.
- Já? Opa! Vamos lá, pessoal? – animou-se, satisfeita por escapar do mal estar que provocara.
Passado algum tempo, Filipa resolveu que já estava na hora de ir embora. Despediu-se de Roberta e de César, combinando um possível jantar  para depois que ela retornasse de Ouro Preto. Aproximou-se de Myriam.
- Vim me despedir, Myriam.
Respirando fundo e com expressão visivelmente envergonhada, Myriam abraçou a amiga de tantos anos.
- Você me desculpa?
- Do quê?
- De ter essa boca grande. Não devia ter falado daquele jeito, afinal era irmã de seu pai, que está de luto, e você deve estar chateada. E eu falando bobagens.
- Não pensa nisso. Eu é que estou meio confusa com tudo isso ainda... Deixa prá lá.
- Agora que passou essa loucura de aniversário, que tal a gente marcar um encontro entre amigas. Só meninas.
- Seria ótimo! Não sei exatamente quando vou viajar... A gente se fala outra hora e combina, tá bom?
- Tá ótimo. Amigas?
- Para sempre! – garantiu e tornaram a abraçar-se.

(continua...)
 
 
Oi, pessoal! Gostando? Sei que ainda é cedo para saber, pois a história está bem no início. Até agora estamos só conhecendo a Filipa, sua família e seus amigos. Aos poucos a vida pacata da nossa historiadora vai mudando de rumo. Aguardem...
Gostaria de deixar o meu agradecimento a Nadja (sempre tão presente e querida) e a Katia (fiquei muuito feliz por saber que estás me acompanhando!) pelos comentários carinhosos. Muito obrigada a todos voces que me visitam nesse meu cantinho de lazer e fantasia.
Beijo grande! Até a próxima!

3 comentários:

  1. Quanto tempo desperdiçamos por bobagens e depois que algo irremediável acontece é que vemos a real dimensão do sofrimento tão desnecessário, só por causa de orgulho! Então já é tarde demais.
    Imagino o arrependimento que o Sr. Artur deve estar sentindo, depois de tantos anos de afastamento da irmã, é nessas horas que percebemos que não somos fisicamente imortais e talvez o amanhã não chegue, tô morrendo de pena dele.
    E os sentimentos da Filipa, herdeira de uma tia que não chegou a conhecer e de quem poderia ter sido tão amiga... já estou emocionada Rô, daí pras lágrimas falta pouco.
    Beijos amiga!!!!

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  2. ... E a ansiedade começa tomar conta pela sinopse não estamos engatinhando ainda... kkk Adoro todo esse mistério que nome terá o par de Filipa? como será esse encontro? Ai jesus deixa eu partir logo ao próximo post... kkk

    Beijãoo!!!

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  3. Essas brigas de família são horríveis! Aliás, brigas – em todos os níveis – são sempre péssimas. As pessoas se esquentam e não conseguem aceitar a opinião do outro, então viram verdadeiras bombas automáticas. E quando há, ainda, o quesito da familiaridade, tudo fica mil vezes pior. E, veja, dá uma pena danada! A Pipa não teve o prazer de conhecer a tia; sua tia não teve a felicidade de poder conviver a sobrinha e os irmãos não puderem ter a alegria de repartir as surpresas do cotidiano entre si. Num caso assim, só há mesmo perdedores, todos perdem.
    Imagino a surpresa e curiosidade da Pipa para saber de todos os detalhes a respeito dessa tia, que só agora soube que existira, mas que já não estava entre nós.

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