domingo, 7 de outubro de 2012

A Cruz de Hainaut - Capítulo III

Antes de ir para casa, passou no supermercado para comprar algumas coisas  para o fim de semana. Ao chegar em casa, estranhou  que a chave não girasse suavemente, como sempre, na fechadura. Depois de alguma dificuldade, conseguiu abrir e... Arregalou os olhos e sentiu sua respiração paralisar diante do que encontrou. Alguém havia entrado no apartamento. Tudo estava revirado, gavetas abertas, quadros entortados nas paredes, armários escancarados, tapetes revolvidos no chão. De repente, lembrou que ainda poderia ter alguém ali. Saiu correndo para pedir ajuda ao zelador, rezando para que ele estivesse em casa.
Apertou a campainha insistentemente até que ele abriu a porta.
- Seu  Josué!  Que bom que o senhor está aí. Por favor! Acho que tem alguém na minha casa. Cheguei agora e ela está toda revirada.
Ele  expressou seu espanto e correu para dentro de casa, sem fechar a porta. Filipa ficou atônita, mas logo verificou assustada a causa da fuga do homem. Ele voltou com uma arma na mão.
- Será que é preciso levar isso, seu Josué?
- É mais seguro, dona Filipa. – afirmou tenso e seguiu escada acima. O prédio não tinha elevador e o apartamento de Filipa ficava no segundo andar.
O zelador armado olhou bem antes de entrar, sempre com a arma em punho. Podia-se notar o tremor em sua mão. Certamente ele não estava habituado a carregar aquilo, o que era uma temeridade, caso encontrasse um assaltante nervoso e armado da mesma forma. O bandido com certeza teria mais experiência que o pobre senhor Josué.
- A senhora fica aqui na porta que eu vou entrar e ver se ainda tem alguém ai. – disse heroicamente.
Filipa estava em pânico e admirou-se com a bravura do funcionário que sempre lhe pareceu pacato e cordial.
Durante minutos intermináveis ouviu barulhos de portas abrindo e fechando. A cada um deles seu coração quase saltava pela boca. Só conseguiu respirar aliviada quando viu a figura pálida, mas também mais tranquila de seu zelador surgindo no meio da sala bagunçada.
- Não tem mais ninguém aqui, dona Filipa, mas é melhor chamar a polícia. Eles fizeram uma tremenda de uma bagunça nas suas coisas.
-Tem razão. Vou chamar a polícia.
- Se quiser, pode ligar lá da minha casa. Acho que a senhora não está passando muito bem. – constatou ao vê-la sem cor alguma no rosto, encostada no marco da porta como se fosse perder o equilíbrio e cair no chão a qualquer momento.
- Eu lhe agradeço muito, seu Josué.
Fecharam a porta do apartamento e seguiram para o andar térreo.
Depois de ligar para a polícia, pensou em ligar para alguém que pudesse acompanhá-la. Talvez tivesse que dar queixa na delegacia do bairro e temia que não fosse capaz de fazer isso sozinha. Nada parecido jamais acontecera com ela. Estava com  medo. Não seria capaz de dormir aquela noite em sua casa. Ligar para Júlio? Seria repreendida. Ligar para Myriam? Ela estaria curtindo o final da festa com Gabriel, abrindo presentes. Não seria justo. Da  mesma forma, com Beta e César, que estariam começando a aproveitar a noite, namorando. Só lhe restava o pai. Ele saberia como lidar com isso e a ajudaria se acalmar. Tentaria deixar a mãe de fora.
- Pai? – falou aliviada ao ouvir sua voz e não a de Ivana.
- Oi, minha filha... – Ele já notara a tensão em sua voz. – Aconteceu alguma coisa?
- Pai... Será que o senhor pode vir até aqui, na minha casa?
- Agora?
- Está tudo bem comigo. É que acabei de levar um susto...
- Que tipo de susto, Pipa? Fale, filha!
- Eu fui assaltada. Entraram na minha casa, mas eu não estava... Eu estou bem, estou muito bem... – Filipa não conseguia parar de falar e as lágrimas começaram a correr.
- Calma, filha. Já estou a caminho.
- Já chamei a polícia, pai. – falou soluçando. – Estou na casa do seu Josué, o zelador.
- Estou indo, filha.
Ainda estava chocada com a opinião dos policiais que visitaram seu apartamento. Informaram-na que a perícia só poderia avaliar a invasão de domicílio na segunda ou terça  e que as chances de que isso facilitasse a prisão ou apenas o resgate dos objetos porventura roubados  eram  mínimas.  Artur, apesar de demonstrar sua irritação contra o tipo de comentário do policial, não discutiu, pois tinha noção das dificuldades enfrentadas pela Brigada Militar e as deficiências do sistema.
- Você quer aguardar a perícia?
- Não. Não quero mais ninguém remexendo em minhas coisas.
- Você já viu se levaram algo de valor?
- Não, mas eu não tinha quase nada de valor aqui, pai. As únicas coisas  eram o anel que vocês me deram nos meus quinze anos e o colar e os brincos de pérola que tinham sido da vovó. Fora isso...
Aceitando o desejo da filha, Artur agradeceu aos brigadianos, que se desculparam por não poder ajudar mais, mostrando em seus rostos a tristeza pela impotência em situações como aquela.
Depois de fechar a porta, finalmente a sós com Filipa, Artur a abraçou.
- Quer que eu a ajude a arrumar essa bagunça e ver o que eles levaram? Está bem para fazer isso ou quer voltar amanhã?
- Pode ser agora...
Aos poucos, a casa foi voltando a sua forma original. À medida que Filipa guardava suas roupas e demais pertences nos lugares apropriados, se dava conta de que nada fora levado e esse fato amenizava a dor de saber que alguém  havia mexido em suas coisas, em sua intimidade.  Nem mesmo suas únicas joias haviam sumido. Talvez não as tivessem encontrado, pois estavam escondidas dentro de uma caixinha de música, dada de presente por Myriam em seu aniversário de dezessete anos, no fundo falso de seu sapateiro. Fora isso, era como se alguém estivesse procurando algo e não tivesse encontrado.
Ao fim de quase duas horas, parecia que nada acontecera ali. Igualmente intrigado com os motivos da invasão, Artur convidou Filipa para dormir na sua casa.
- Obrigada, pai, mas prefiro ficar aqui.
- Não acho que seja uma boa atitude, filha. Quem quer que tenha feito isso, pode voltar.
- Acho que eles estavam atrás de joias e dinheiro e, como não encontraram  nada disso, foram embora. Não há motivo algum para voltarem .
- Então, eu durmo aqui.
- Não mesmo, pai. Muito obrigada por tudo, mas já estou bem e aliviada por não ter acontecido nada pior.
- Pior?
- Eles podiam ter ficado com  raiva de não terem achado nada de valor e terem destruído tudo ou feito algum tipo de vandalismo.
Artur olhou para a filha com o cenho franzido.
- Deixar você aqui depois disso não é uma ideia que me agrade.
- Ainda tenho o meu aparelho de vídeo e os meus filmes para ver. A pipoqueira está na cozinha e as pipocas estão loucas para serem estouradas.
Artur sorriu admirado da coragem da filha.  Lembrou que assistir filmes antigos era o programa preferido de Filipa desde sempre.
- Que tal ter a companhia de seu velho pai para curtir uma sessão de cinema com pipocas?
- Pai!
- Você prefere que  eu fique  insone e doente de preocupação?
- Isso é golpe baixo, seu Artur.
- Vou ligar para a sua mãe e avisá-la que vou ficar por aqui.
- Tá bom... O senhor venceu. – Abraçou-o carinhosamente.
Terminado o agitado fim de semana, o sol voltou a brilhar sobre a capital gaúcha, apesar de o frio ter voltado mais intenso. Filipa entrou com um pedido de licença de três dias junto à direção da faculdade, para poder tratar do espólio de sua tia. A passagem de ida e volta foi comprada e Artur combinou com Vieira, o advogado mineiro, a chegada de Filipa em Belo Horizonte na quinta feira, no início da tarde. Ela voltaria na segunda-feira.
Despedidas e recomendações feitas, Filipa partiu na manhã de quinta,  rumo à Belo Horizonte. Chegando ao aeroporto, era aguardada por um motorista que faria o seu transfer para o hotel reservado em Ouro Preto. Para sua surpresa, junto ao motorista, o Dr. Vieira também estava a sua espera.
- É um prazer conhecê-la, senhorita Filipa Vasconcelos.
Era um sujeito agradável,  de meia idade, estatura mediana, fartos cabelos pretos, penteados para trás com algum tipo de fixador, olhar arguto e uma voz tranquilizadora.
- O prazer é meu, Dr. Vieira. – respondeu Filipa atrapalhando-se com sua bagagem de mão e a bolsa ao cumprimentá-lo.
Estava um pouco tonta, resultado dos dois copos de vinho que bebera  durante o voo, para poder encarar com menos ansiedade a viagem de avião. Não era adepta do transporte aéreo. Qualquer coisa que pudesse deixá-la acima de dois metros do solo lhe provocava vertigens.  Identificava-se  muito com o personagem "Scottie",  de Um Corpo que Cai, de Hitchcock, graças a essa fobia em comum.
- Permita que eu a ajude. – disse, pegando a pequena maleta das mãos de Filipa. – Vamos?
A viagem transcorreu tranquila e durante o trajeto, Filipa aproveitou para fazer algumas perguntas ao advogado de sua tia.
- O senhor a conhecia bem?
- Eu era advogado e amigo do Arruda, marido dela. Depois que ele faleceu em 2008, ela voltou a me procurar pouco tempo depois para fazer o seu próprio testamento. Tinha medo de morrer e não ver cumpridos seus desejos. Era uma senhora muito simpática. Eu me preocupava com a insistência dela em continuar sozinha naquele casarão. Ouro Preto já não é a mesma de alguns anos atrás. Muitos bandidos  mudaram para cá e as residências tem precisado de mais segurança.
- Por que o senhor diz isso? Ela morreu de ataque cardíaco, não?
- Sim, mas, segundo a polícia, a casa foi invadida na hora em que ela morreu. Não sabem dizer se antes ou depois que ela faleceu. Há uma forte suspeita de que o coração não tenha resistido quando ela viu a casa sendo assaltada.
Filipe sentiu um mal estar ao ouvir as palavras do Dr. Vieira.
- Meu pai não me falou nada disso. Ele soube?
- Eu contei por alto.  Não quis dar muitos detalhes pelo telefone.
Agora ela podia entender melhor o medo de seu pai de deixá-la sozinha no apartamento naquela  noite. Nunca o vira tão preocupado antes. Certamente não falara sobre o ocorrido com a irmã  para não assustá-la ainda mais. Deu um meio sorriso ao pensar que tinha achado o pai mais falante que nunca no dia do assalto ao seu apartamento. E olhe só o que ele lhe escondera. Olhou mais uma vez para o homem ao seu lado e sentiu medo de formular a próxima pergunta.
- Levaram alguma coisa de valor?
- Esse é o mistério. Reviraram toda a casa, mas aparentemente não levaram  nada, segundo a faxineira que costuma limpá-la.
Filipa engoliu em seco. Era muita coincidência... Olhou pela janela do carro pensativa.
Já era noite quando o carro estacionou diante do hotel. O prédio, branco com janelas pintadas de azul, era um antigo casario de dois andares, bem no centro da cidade. Tudo ali cheirava a história. Podia imaginar mulheres de longos vestidos e homens de casaca passeando por aquelas ruas no início da noite. Podia ouvir os sussurros dos inconfidentes escondidos em algumas daquelas casas conspirando contra a dominação portuguesa.
- O restaurante daqui é muito bom, mas,  se preferir jantar em outro lugar, existe várias opções de restaurantes próximos daqui. – comentou quando entraram na recepção e Filipa foi preencher a ficha de hóspedes. – Vou deixá-la descansar e amanhã pela manhã passo aqui para levá-la a casa de sua tia. Achei que gostaria de conhecer. Lá mesmo poderei ler o testamento que ela deixou.
- Muito obrigada, Dr. Vieira. Acho que vou comer alguma coisa por aqui mesmo. E o senhor? Vai ficar hospedado aqui também?
- Não... – sorriu – Tenho alguns parentes que moram na cidade. Sempre fico hospedado com eles quando preciso vir a Ouro Preto.
- Que bom...
- Então... Até amanhã.  Às nove horas, está bom?
- Sim, claro! Uma boa noite para o senhor.
- Para a senhorita também.
- Por favor, o senhor pode me chamar de Filipa.
- Pois não... Filipa. – E despediu-se com um aceno de cabeça.
Preenchida a sua ficha, foi levada por um rapaz até o seu quarto. As  paredes azul-claro contrastavam com o piso de tabuão escuro. Haviam  mantido  uma decoração simples, como deveria ser no século 18, com uma cama de casal e um armário de madeira encerada mais escura que o piso, uma mesa de cabeceira onde havia um  abajur em forma de lampião. Porém, o melhor de tudo era a vista. Quando Filipa abriu as janelas soltou uma exclamação de extasiamento diante da visão espetacular da cidade, com suas luzes acesas iluminando os declives e elevações onde as casas acumulavam-se, como se  empilhadas umas sobre as outras.
 
 
Acordou com o telefone da mesa de cabeceira tocando. Seu sono tinha sido agitado por pesadelos onde via um homem  todo vestido de preto entrando em sua casa, enquanto ela se escondia no quarto. Ele conseguia encontrá-la e começava a ameaçá-la com uma faca, perguntando por alguma coisa que ela não entendia o que era. Só conseguia ouvir sua própria voz gritando "não sei! ",  enquanto a faca se aproximava de seu rosto. Lembrou que estava no hotel em Ouro Preto e alcançou o fone, levando-o ao ouvido.
- Sim? – perguntou com a voz rouca.
- Bom dia, senhorita. O Dr. Vieira a espera na recepção.
- O quê? Oh! Ah, sim! Muito obrigada. Já vou descer.
Deu um pulo da cama, recriminando-se por ter se esquecido de colocar o alarme no celular para despertar. Que vergonha! Correu para o banheiro. Vestiu um jeans e uma camiseta, pegou sua bolsa e saiu tropeçando pelo corredor. Estava morrendo de fome, pois acabara dormindo sem comer nada, tão cansada que estava com o estresse do avião e a viagem de carro até Ouro Preto. Pensava se daria tempo de tomar o café da manhã. Quando saiu do elevador, logo viu o Dr. Vieira no saguão, sentado em uma das poltronas confortáveis que havia por ali. Não pode nem disfarçar e dar uma chegada ao salão onde serviam o café.
- Bom dia, Dr.Vieira. Desculpe o atraso.
- Não tem  problema. Já tomou seu café?
- Na verdade não, mas...
- Eu a acompanho, se não for incomodo.
- Incomodo algum...
- Podemos conversar sobre o testamento enquanto isso.
- Ótimo!

(continua...)



Esse capítulo foi só para dar um gostinho a mais. Não se acostumem...rsrs.
Beijinhos!!


 

3 comentários:

  1. Rô amiga!!
    Fiquei imaginando uma pessoa chegar em casa e ver que alguém invadiu e revirou suas coisas, mesmo sem levar nada, deve ser uma sensação de impotência horrível!
    Cada vez gosto mais da Filipa, como ela tem bom gosto, adora filmes antigos, rsrsrsr. Que mudança repentina na vida dela, quantas novidades, quantas descobertas.
    Beijos amiga!!!

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  2. Que maldade Rô estava mordendo os lábios de curiosidade poxa.... kkk Vc está cada vez melhor nisso danada... kkk

    beijasso!!!

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  3. Essas brigas de família são horríveis! Aliás, brigas – em todos os níveis – são sempre péssimas. As pessoas se esquentam e não conseguem aceitar a opinião do outro, então viram verdadeiras bombas automáticas. E quando há, ainda, o quesito da familiaridade, tudo fica mil vezes pior. E, veja, dá uma pena danada! A Pipa não teve o prazer de conhecer a tia; sua tia não teve a felicidade de poder conviver a sobrinha e os irmãos não puderem ter a alegria de repartir as surpresas do cotidiano entre si. Num caso assim, só há mesmo perdedores, todos perdem.
    Imagino a surpresa e curiosidade da Pipa para saber de todos os detalhes a respeito dessa tia, que só agora soube que existira, mas que já não estava entre nós.
    Já fui a Ouro Preto, mas só fiquei um dia, pois estava hospedada em Belo Horizonte. Ouro Preto é uma cidade pequena, do tipo que eu adoro, mas andar de salto por lá é uma aventura, haja vista que as ruas são repletas de subidas e descidas... hehehe. Tenho vontade de voltar a visitar aqueles lados, com mais tempo, poder conhecer melhor cada pedacinho daquelas cidades tão prazerosas!
    É, a Pipa já viu que a coisa está pegando para o seu lado, pois seria muita coincidência a ocorrência de ambos assaltos sem um ponto em comum.
    Beijinhos

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