by Kodama e Fantin
Materializei-me em meu quarto em Malachy. Estava confuso e me maldizia pelo que tinha acabado de acontecer. O que ela estaria fazendo na Catedral àquela hora? Por que não estava cuidando de seu tutelado ou rezando em sua própria dimensão? Por que seu olhar me atraia tanto?... Eu só poderia desprezá-la por ser quem era e por servir àqueles que me jogaram no limbo. Saberia ela sobre os perigos que seu tutelado corria? Talvez devesse alertá-la sobre a possibilidade de Dominic estar sendo envolvido em algo indesejável. Mesmo não gostando de minha “vida”, não admitiria a vitória deles novamente. Ariel... Ela parecia me odiar... Mesmo sem saber o porquê, sei que ela podia sentir o monstro por detrás de minha aparência humana. Sua pele era suave e perfumada... Sacudi a cabeça tentando evitar devaneios como aquele. O desejo da fera, com a qual eu era obrigado a conviver intimamente, às vezes tornava-se incomodo e inoportuno. Meu autocontrole novamente seria testado diante daquela jovem guardiã. Precisava certificar-me de suas intenções e da extensão de seus conhecimentos. Ainda estava incerto quanto à Dominic, que aparentava uma ingenuidade tocante. Não fosse minha experiência adquirida ao longo dos séculos, poderia confiar totalmente nele. Guardiões, demônios e humanos já haviam tentado destruir-me inúmeras vezes sem êxito... No íntimo, eu quase lamentava este fato... Contudo eu não podia simplesmente deixá-los vencer. Seria mais uma injustiça... Tentei mudar o rumo de meus pensamentos. Não queria atravessar o resto da noite a pensar em meus perseguidores e experiências ruins. Introduzi a imagem de Leonora em minha mente. Seu rosto suave, com algumas graciosas sardas a enfeitar-lhe a face angulosa, os irrequietos olhos azuis, os lábios cheios e rosados e os cabelos vermelhos e sedosos a emoldurar todo este conjunto de benfeitorias... E a voz... Se pudesse fazê-la ficar muda... Entretanto ela insistia em dar opinião em tudo. Opiniões nem sempre inteligentes, muitas vezes constrangedoras. Como era possível ter sido criada uma criatura tão encantadora e ao mesmo tempo tão... Imatura! Talvez fosse isso. A voz poderia ser mudada com o auxílio de uma fonoaudióloga... ou uma cirurgia de cordas vocais, na pior das hipóteses A maturidade e um bom professor, à semelhança de Pigmalião, poderiam dar conta da aparente mediocridade. Na verdade, tudo isso a nada levaria. Precisava compreender que Leonora era apenas uma casca do que fora Cath. Era apenas isso... Ou... Estariam as forças do mal por trás disso? Talvez a indução de Dominic a ir ao meu encontro... Subitamente fiquei aterrorizado. A semelhança de Leonora com Cathela poderia ser sua sentença de morte... Seria possível que depois de tanto tempo eles voltassem a me rondar? Lembrei da presença que detectara na Catedral dias atrás.
No dia seguinte, depois de uma manhã de trabalho exaustivo, comandando e ordenando as finanças em meu escritório, resolvi aguardar a saída dos alunos na porta da escola de Leonora. Teria que ter muito cuidado ao cercá-la. Apesar de sentir-me extremamente atraído por sua aparência física, tinha plena consciência de que isso era totalmente inadequado no momento, principalmente se minha teoria quanto a ela ser uma isca fosse verdade. Outro motivo era que não gostaria de entrar em atrito com Dominic. Apenas olhá-la já era o suficiente para aquecer meu espírito. Minha intuição dizia que tanto Dominic quanto Leonora eram inocentes no que dizia respeito à trama em que estavam sendo envolvidos. Certamente em breve eu receberia a visita de meu velho, insistente e perigoso amigo.
Notei o olhar de repreensão de Angus pelo espelho retrovisor quando paramos diante da escola secundária e a figura peculiar de Leonora surgiu no portão. Desci do carro, deixando que ela me notasse. Em meio a dezenas de adolescentes agitados, muitos vestidos de maneira bizarra, mutilados por piercings ou tatuados como apenas os marujos faziam antigamente, a simples visão da jovem vestida simplesmente com um jeans surrado e um abrigo de lã azul, tendo os cabelos soltos sobre os ombros, era refrescante.
Ela abriu um lindo sorriso ao me ver. Despediu-se das amigas que a cercavam, não sem antes cochichar algo que as fez olharem diretamente para o carro onde eu estava e trocarem risinhos nervosos entre si. Com um modo de andar que certamente ela ensaiara por horas diante de um espelho em sua casa, atravessou a rua com o olhar fixo em mim. Quase foi atropelada por um ônibus escolar, não fosse seu guardião fazê-la tropeçar num paralelepípedo solto, distraído-a e fazendo-a parar a menos de um metro onde o veículo cheio de crianças passava alheio ao que poderia ter acontecido. De alguma forma eu sabia que ele conseguiria evitar o acidente - o que, no meu conceito, poderia ter sido feito de forma mais elegante -, por isso me mantive sereno, apenas observando-a. Não saberia dizer se foi apenas uma impressão, mas me pareceu que o anjo de Leonora percebera a minha presença e me lançara um olhar malicioso... Provavelmente eu me enganara... No entanto, o encanto foi quebrado quando ela se aproximou. Leonora deveria ser uma garota mais recatada, mas assim que conseguiu atravessar a rua em segurança, lançou-se em meus braços e ofereceu a face para um beijo. Criatura ingênua! Com esse simples gesto, seu delicado pescoço ficou a centímetros de minha boca e senti minhas presas rompendo a gengiva, loucas para aceitarem aquele oferecimento inconsequente.
Percebi que o guardião imediatamente assumiu uma postura defensiva, com a mão na espada e um estranho e flamejante olhar em minha direção. Mas não foi por receio dele que eu simplesmente me abaixei e depositei um beijo casto na face que Leonora me oferecia. Não. Foi por mim mesmo que o fiz. Para ter o prazer de sentir aquela fragrância de casta inocência e confiança em minha pessoa novamente. Inalei o perfume que se desprendia dos cabelos soltos e da pele rosada, como quem inala um perfume raro e fabuloso. Esforcei-me para recolher as presas salientes e ao me endireitar, pude fitar um par de brilhantes e sonhadores olhos azuis.
Abri a porta do carro e, com um gesto, a convidei para que se acomodasse. Ela o fez rapidamente, examinando fascinada o interior luxuoso da Mercedes.
- Então... Por que está aqui? – perguntou com a voz um pouco mais aguda que o normal, certamente pelo nervosismo. Seu guardião estava acomodado ao seu lado, acompanhando o diálogo, sem interferir.
- Dominic pediu para levá-la para casa – menti, sem nenhum remorso. O anjo apenas arqueou uma sobrancelha.
- Dominic? Que estranho! Ele não me ligou avisando... Mas adorei a ideia!
Não manifestei qualquer reação à sua alegria. Tentava manter-me alerta. Só então, percebi que ela sorria de alguma coisa que Natanael cochichara em seu ouvido e que eu não consegui ouvir, mesmo com minha audição aguçada. Provavelmente tentava influenciá-la de alguma forma, já que ela certamente não poderia ouvi-lo. Ela mascava um chiclete e parecia absorta em algum tipo de devaneio, pois seus olhos azuis estavam vagando, sem foco. Incomodado, tentei alterar o comportamento estranho.
- Você não quer se livrar desta... goma de mascar?
- Se te incomoda... Tudo bem... – ela tentava alterar o timbre da voz, para soar menos aguda, mas só a fazia mais incômoda ao aparelho auditivo. Já duvidava que aquilo tivesse conserto.
- Por favor... – disse aborrecido.
Observando-me curiosa, tirou a abominação macilenta da boca e procurou um lugar para depositá-la. Olhou-me então com expectativa, e não tive outro jeito a não ser pegar um lenço de linho, que costumava carregar no bolso do paletó – hábito adquirido em outros tempos –, e deixá-la depositar sua goma na superfície branca. Embrulhei-a, tentando parecer o mais normal possível, e tornei a guardar no bolso. Jogaria fora o conjunto assim que possível.
- Quer almoçar comigo? – convidei imaginando que, enquanto ela comesse, eu poderia apenas observá-la e esquecer todo resto.
- Claro! Sabe que... eu não deveria dizer isso, mas ... sonhei com você esta noite?! – disse terminando a frase bem baixinho, arrependida de ter contado.
Sorri. Criança tola..., pensei.
- Sério?! – disse apenas para incentivá-la a continuar.
- Pois é... Foi um sonho muito ... estranho. Posso contar? – perguntou como se falasse consigo mesma. A resposta do guardião foi negativa, pelo que pude entender, dado o desagrado que ela demonstrava após ele sussurrar novamente ao seu ouvido. Logo, a expressão foi substituída por outra, que eu também já havia visto muito, em minha longa existência: teimosia.
- Conte-me. – Sugeri em um sussurro, para aumentar o desagrado de Natanael que voltou a segurar a espada. A atitude do anjo me divertia, devo admitir. Ele tentava proteger a garota, mas sua atuação teatral era patética. Sorri, encorajando-a.
- Agora não. Onde estamos indo? – questionou subitamente ansiosa, dando-se conta, finalmente, que se encontrava sozinha em um carro com um homem estranho.
- Está com medo de mim?
- Não! É que... Gostaria de saber aonde vamos... – sua voz sumiu no meio da frase e percebi que o anjo me observava.
- Não tema. Vamos até minha casa. Meu cozinheiro é fantástico. – disse disposto a acalmá-la, tocando em seu braço com minha mão enluvada. – Aposto que você vai adorar.
O sorriso que recebi tocaria meu coração, se eu tivesse um. Era de pura e simples confiança. O olhar se assemelhava ao de um animalzinho de estimação, cujo dono estivesse lhe fazendo um agrado. Tão inocente, sem sequer desconfiar que pudesse estar sendo levado ao abrigo de animais, para ser abandonado por lá. Pensei em Dominic e em sua zelosa guardiã. Não poderia submeter Leonora aos meus caprichos. Precisava estar atento a qualquer sinal de perigo e resistir às tentações, principalmente se pretendia levar adiante o estranho relacionamento que tinha com seu irmão mais velho.
Angus já estacionara o Mercedes em frente às velhas escadas de pedra que levavam à porta de carvalho do castelo. Sorri para Leonora e abri a porta, tomando-lhe a mão, pequena e morna, para guiá-la em direção ao interior do meu castelo. Apenas um olhar a Natanael, que já percebera que eu podia vê-lo, e ele abriu as asas em toda a imponência e nos seguiu, alguns passos atrás. Entramos e deixei a porta bater, barrando-lhe a entrada... Pelo menos por alguns instantes, pois logo em seguida ele atravessou a madeira maciça e secular com expressão desafiadora.
- A sua casa é linda, senhor Sinclair.
- Obrigado... Mas pode me chamar de Kyle...
Angus entrou na sala e dirigiu-se à Leonora, pedindo que tirasse o casaco, pendurando-o no cabideiro existente no hall de entrada.
- O almoço será servido imediatamente, senhor. – disse polidamente, permanecendo postado junto a nós, em atitude vigilante. Tínhamos, portanto, dois guardiões interessados em que aquele encontro não fosse frutífero.
- Antes quero mostrar uma coisa para você.
- Uma surpresa? – exclamou excitada.
- Siga-me, por favor.
Sem esperar uma segunda ordem, seguiu meus passos, curiosíssima acerca do que a aguardava. Atravessamos o grande salão que ela conhecera outro dia, chegando até uma das tapeçarias que cobriam parte da parede de pedra.
- Queria que eu visse esse tapete? – indagou decepcionada.
- O que está atrás do tapete... – Afastando a peça com a mão, expus uma porta de madeira muito antiga, com detalhes em ferro batido.
- Uma passagem secreta? – Senti incendiar sua curiosidade. – Onde ela vai dar?
- Por aqui – indiquei o caminho ao abrir a passagem e mostrar os degraus estreitos e desgastados de pedra que subiam em caracol para o alto da construção.
Depois de algumas dezenas de metros na escada, seguidos indiscretamente pelo anjo de Leonora, ela parou levemente arfante e perguntou se ainda demorava muito para chegar onde eu queria.
- Apenas mais um minuto. Pode descansar um pouco.
- Pelo jeito você está em ótima forma.
- Nem imagina quanto... – falei esboçando um sorriso irônico ao imaginar a surpresa dela se soubesse minha idade real.
Finalmente chegamos ao topo onde mais uma porta semelhante a anterior encontrava-se fechada. Ao abri-la, estendeu-se diante de nós um pequeno jardim de inverno, com cobertura de vidro que permitia que a luz inundasse o local. O paisagista que eu contratara fizera um belo serviço. Canteiros com urzes e ajoncs em flor, trepadeiras e outras espécies de vegetação característicos do sul da Escócia formavam um adorável horto temático, algo inimaginável levando-se em conta a estação invernal em que nos encontrávamos. Em meio a este discreto ecossistema, de uma ampla janela envidraçada, descortinava-se a paisagem deslumbrante da baía do Mar do Norte.
- Que beleza isso aqui... Deve dar um trabalhão para cuidar, não?
- O jardineiro que cuida é muito hábil.
- O que tinha aqui antes?
- Uma masmorra.
- Sério? Que legal!
- Não creio que esta seja a palavra adequada para descrever esta masmorra.
- Tá bom... Desculpe... – pediu chateada ao notar minha expressão entristecida.
- Uma jovem morreu neste lugar há muitos anos atrás... – engoli em seco a dor que sentia ao relembrar tal fato. – Ela foi capturada e preferiu morrer a se entregar aos seus raptores. Acabou por saltar desta torre.
- Coitada...
Perguntei-me por que diabos eu tinha levado aquela garota até ali. Com suas interjeições medonhas e palavras ocas, maculava o santuário de Cath, mostrando o quão tolo eu estava sendo ao pensar que ela pudesse demonstrar qualquer resquício do espírito de minha amada.
- Estou morrendo de fome! – continuou alegremente, sem respeito algum. – Este almoço sai ou não?
Devo ter expressado meu desagrado pela atitude de Leonora de forma tão escancarada, que o seu anjo abriu as asas sobre ela, em modo defensivo. Apenas sorri, achando graça do pobre coitado que tinha de proteger aquela jovem inconsequente.
- Sendo assim, vamos satisfazer seu apetite. Por aqui, por favor... – apontei o caminho de volta.
Mal tinha terminado a frase, surgiu outro ser diante de mim, batendo as asas furiosamente e fulminando-me com seu olhar flamejante. Era Ariel, a guardiã de Dominic. Por que diabos ela não cuidava apenas do seu protegido? Talvez achasse que o macho ao lado da jovem não fosse suficientemente eficaz para protegê-la?
- Leonora, pode descer sozinha? Quero ficar aqui mais alguns instantes. Logo estarei junto a você.
- Tá certo. Tô indo! – aceitou imediatamente, sem comentários.
Deste modo, fiquei sozinho a enfrentar a bela anja superprotetora.
- Vejo que resolveu adotar os dois irmãos... O seu superior sabe disso? Creio que ele não gostaria dessa intromissão. Além disso, acho uma falta de respeito com seu colega.
- Foi ele quem me avisou sobre este encontro absurdo. O que está pretendendo com essa garota? Já conquistou o irmão... Quais suas intenções? – perguntou arrogantemente, erguendo as sobrancelhas de um modo muito atraente.
- Está com ciúmes? – Gostava de atiçá-la e de observar as reações dela. Cheguei a pensar ter visto suas faces corarem, se é que anjos podiam ter este tipo de reação.
- Você é muito pretensioso. Não pense que vai me enganar fazendo este jogo de palavras. Sei que deve ter algum motivo obscuro que o atrai para estes irmãos.
- Não poderia ser apenas uma atração física por uma bela mulher? Aprecio muito a beleza, assim como as notas musicais. Há algum pecado nisso, Ariel? – disse seu nome pela primeira vez.
- Ela ainda é uma criança!
- Que eu saiba, ela tem dezessete anos e é bem esperta. Logo fará dezoito e poderá legalmente fazer suas próprias escolhas. – Sentia-me especialmente excitado por provocá-la.
- Pensei que respeitasse Dominic como amigo.
- Eu o respeito. Quem está maliciando é você. Eu apenas quis ser gentil convidando-a para almoçar. Não tenho intenção de levá-la para cama... Hoje.
Ariel estava indignada e eu estava adorando irritá-la.
- Se você tentar seduzi-la de alguma forma, terá que se haver comigo e com Dominic.
- Vou adorar acertar contas com você, meu bem – afirmei sarcasticamente, deixando-a mais agitada.
- Está avisado! – ameaçou e sumiu no ar tão inesperadamente como tinha surgido, deixando um rastro de perfume celestial e delicioso.
Surpreendentemente senti uma agradável integração entre aquela anja e o memorial de Cath. Aspirei o aroma no espaço que ela ocupara há alguns instantes e comecei a descida para a sala onde Leonora certamente estaria me esperando faminta.
- Pensei que tinha me esquecido... – disse ela ao perceber minha presença, já sentada no lugar preparado por Angus.
- Jamais esqueço minhas convidadas, principalmente quando são tão bonitas como você.
- Você me acha bonita? – indagou a insegura adolescente que ela era.
- Nunca lhe disseram isso?
- Na verdade, não... Sempre implicaram com as minhas sardas. Odeio elas!
- Pois eu acho que elas lhe dão um ar de sensualidade, que vai acompanhá-la mesmo quando estiver em idade madura.
- Fala sério? – perguntou deslumbrada com o elogio.
Eu apenas sorri.
- Bem, vamos ao nosso almoço.
Estranhei a ausência do guardião quando encontrei Leonora, mas foi apenas pensar nele, para vê-lo surgir atrás de sua protegida. Provavelmente estava em conferência com sua amiguinha intrometida.
Notei o olhar de repreensão de Angus pelo espelho retrovisor quando paramos diante da escola secundária e a figura peculiar de Leonora surgiu no portão. Desci do carro, deixando que ela me notasse. Em meio a dezenas de adolescentes agitados, muitos vestidos de maneira bizarra, mutilados por piercings ou tatuados como apenas os marujos faziam antigamente, a simples visão da jovem vestida simplesmente com um jeans surrado e um abrigo de lã azul, tendo os cabelos soltos sobre os ombros, era refrescante.
Ela abriu um lindo sorriso ao me ver. Despediu-se das amigas que a cercavam, não sem antes cochichar algo que as fez olharem diretamente para o carro onde eu estava e trocarem risinhos nervosos entre si. Com um modo de andar que certamente ela ensaiara por horas diante de um espelho em sua casa, atravessou a rua com o olhar fixo em mim. Quase foi atropelada por um ônibus escolar, não fosse seu guardião fazê-la tropeçar num paralelepípedo solto, distraído-a e fazendo-a parar a menos de um metro onde o veículo cheio de crianças passava alheio ao que poderia ter acontecido. De alguma forma eu sabia que ele conseguiria evitar o acidente - o que, no meu conceito, poderia ter sido feito de forma mais elegante -, por isso me mantive sereno, apenas observando-a. Não saberia dizer se foi apenas uma impressão, mas me pareceu que o anjo de Leonora percebera a minha presença e me lançara um olhar malicioso... Provavelmente eu me enganara... No entanto, o encanto foi quebrado quando ela se aproximou. Leonora deveria ser uma garota mais recatada, mas assim que conseguiu atravessar a rua em segurança, lançou-se em meus braços e ofereceu a face para um beijo. Criatura ingênua! Com esse simples gesto, seu delicado pescoço ficou a centímetros de minha boca e senti minhas presas rompendo a gengiva, loucas para aceitarem aquele oferecimento inconsequente.
Percebi que o guardião imediatamente assumiu uma postura defensiva, com a mão na espada e um estranho e flamejante olhar em minha direção. Mas não foi por receio dele que eu simplesmente me abaixei e depositei um beijo casto na face que Leonora me oferecia. Não. Foi por mim mesmo que o fiz. Para ter o prazer de sentir aquela fragrância de casta inocência e confiança em minha pessoa novamente. Inalei o perfume que se desprendia dos cabelos soltos e da pele rosada, como quem inala um perfume raro e fabuloso. Esforcei-me para recolher as presas salientes e ao me endireitar, pude fitar um par de brilhantes e sonhadores olhos azuis.
Abri a porta do carro e, com um gesto, a convidei para que se acomodasse. Ela o fez rapidamente, examinando fascinada o interior luxuoso da Mercedes.
- Então... Por que está aqui? – perguntou com a voz um pouco mais aguda que o normal, certamente pelo nervosismo. Seu guardião estava acomodado ao seu lado, acompanhando o diálogo, sem interferir.
- Dominic pediu para levá-la para casa – menti, sem nenhum remorso. O anjo apenas arqueou uma sobrancelha.
- Dominic? Que estranho! Ele não me ligou avisando... Mas adorei a ideia!
Não manifestei qualquer reação à sua alegria. Tentava manter-me alerta. Só então, percebi que ela sorria de alguma coisa que Natanael cochichara em seu ouvido e que eu não consegui ouvir, mesmo com minha audição aguçada. Provavelmente tentava influenciá-la de alguma forma, já que ela certamente não poderia ouvi-lo. Ela mascava um chiclete e parecia absorta em algum tipo de devaneio, pois seus olhos azuis estavam vagando, sem foco. Incomodado, tentei alterar o comportamento estranho.
- Você não quer se livrar desta... goma de mascar?
- Se te incomoda... Tudo bem... – ela tentava alterar o timbre da voz, para soar menos aguda, mas só a fazia mais incômoda ao aparelho auditivo. Já duvidava que aquilo tivesse conserto.
- Por favor... – disse aborrecido.
Observando-me curiosa, tirou a abominação macilenta da boca e procurou um lugar para depositá-la. Olhou-me então com expectativa, e não tive outro jeito a não ser pegar um lenço de linho, que costumava carregar no bolso do paletó – hábito adquirido em outros tempos –, e deixá-la depositar sua goma na superfície branca. Embrulhei-a, tentando parecer o mais normal possível, e tornei a guardar no bolso. Jogaria fora o conjunto assim que possível.
- Quer almoçar comigo? – convidei imaginando que, enquanto ela comesse, eu poderia apenas observá-la e esquecer todo resto.
- Claro! Sabe que... eu não deveria dizer isso, mas ... sonhei com você esta noite?! – disse terminando a frase bem baixinho, arrependida de ter contado.
Sorri. Criança tola..., pensei.
- Sério?! – disse apenas para incentivá-la a continuar.
- Pois é... Foi um sonho muito ... estranho. Posso contar? – perguntou como se falasse consigo mesma. A resposta do guardião foi negativa, pelo que pude entender, dado o desagrado que ela demonstrava após ele sussurrar novamente ao seu ouvido. Logo, a expressão foi substituída por outra, que eu também já havia visto muito, em minha longa existência: teimosia.
- Conte-me. – Sugeri em um sussurro, para aumentar o desagrado de Natanael que voltou a segurar a espada. A atitude do anjo me divertia, devo admitir. Ele tentava proteger a garota, mas sua atuação teatral era patética. Sorri, encorajando-a.
- Agora não. Onde estamos indo? – questionou subitamente ansiosa, dando-se conta, finalmente, que se encontrava sozinha em um carro com um homem estranho.
- Está com medo de mim?
- Não! É que... Gostaria de saber aonde vamos... – sua voz sumiu no meio da frase e percebi que o anjo me observava.
- Não tema. Vamos até minha casa. Meu cozinheiro é fantástico. – disse disposto a acalmá-la, tocando em seu braço com minha mão enluvada. – Aposto que você vai adorar.
O sorriso que recebi tocaria meu coração, se eu tivesse um. Era de pura e simples confiança. O olhar se assemelhava ao de um animalzinho de estimação, cujo dono estivesse lhe fazendo um agrado. Tão inocente, sem sequer desconfiar que pudesse estar sendo levado ao abrigo de animais, para ser abandonado por lá. Pensei em Dominic e em sua zelosa guardiã. Não poderia submeter Leonora aos meus caprichos. Precisava estar atento a qualquer sinal de perigo e resistir às tentações, principalmente se pretendia levar adiante o estranho relacionamento que tinha com seu irmão mais velho.
Angus já estacionara o Mercedes em frente às velhas escadas de pedra que levavam à porta de carvalho do castelo. Sorri para Leonora e abri a porta, tomando-lhe a mão, pequena e morna, para guiá-la em direção ao interior do meu castelo. Apenas um olhar a Natanael, que já percebera que eu podia vê-lo, e ele abriu as asas em toda a imponência e nos seguiu, alguns passos atrás. Entramos e deixei a porta bater, barrando-lhe a entrada... Pelo menos por alguns instantes, pois logo em seguida ele atravessou a madeira maciça e secular com expressão desafiadora.
- A sua casa é linda, senhor Sinclair.
- Obrigado... Mas pode me chamar de Kyle...
Angus entrou na sala e dirigiu-se à Leonora, pedindo que tirasse o casaco, pendurando-o no cabideiro existente no hall de entrada.
- O almoço será servido imediatamente, senhor. – disse polidamente, permanecendo postado junto a nós, em atitude vigilante. Tínhamos, portanto, dois guardiões interessados em que aquele encontro não fosse frutífero.
- Antes quero mostrar uma coisa para você.
- Uma surpresa? – exclamou excitada.
- Siga-me, por favor.
Sem esperar uma segunda ordem, seguiu meus passos, curiosíssima acerca do que a aguardava. Atravessamos o grande salão que ela conhecera outro dia, chegando até uma das tapeçarias que cobriam parte da parede de pedra.
- Queria que eu visse esse tapete? – indagou decepcionada.
- O que está atrás do tapete... – Afastando a peça com a mão, expus uma porta de madeira muito antiga, com detalhes em ferro batido.
- Uma passagem secreta? – Senti incendiar sua curiosidade. – Onde ela vai dar?
- Por aqui – indiquei o caminho ao abrir a passagem e mostrar os degraus estreitos e desgastados de pedra que subiam em caracol para o alto da construção.
Depois de algumas dezenas de metros na escada, seguidos indiscretamente pelo anjo de Leonora, ela parou levemente arfante e perguntou se ainda demorava muito para chegar onde eu queria.
- Apenas mais um minuto. Pode descansar um pouco.
- Pelo jeito você está em ótima forma.
- Nem imagina quanto... – falei esboçando um sorriso irônico ao imaginar a surpresa dela se soubesse minha idade real.
Finalmente chegamos ao topo onde mais uma porta semelhante a anterior encontrava-se fechada. Ao abri-la, estendeu-se diante de nós um pequeno jardim de inverno, com cobertura de vidro que permitia que a luz inundasse o local. O paisagista que eu contratara fizera um belo serviço. Canteiros com urzes e ajoncs em flor, trepadeiras e outras espécies de vegetação característicos do sul da Escócia formavam um adorável horto temático, algo inimaginável levando-se em conta a estação invernal em que nos encontrávamos. Em meio a este discreto ecossistema, de uma ampla janela envidraçada, descortinava-se a paisagem deslumbrante da baía do Mar do Norte.
- Que beleza isso aqui... Deve dar um trabalhão para cuidar, não?
- O jardineiro que cuida é muito hábil.
- O que tinha aqui antes?
- Uma masmorra.
- Sério? Que legal!
- Não creio que esta seja a palavra adequada para descrever esta masmorra.
- Tá bom... Desculpe... – pediu chateada ao notar minha expressão entristecida.
- Uma jovem morreu neste lugar há muitos anos atrás... – engoli em seco a dor que sentia ao relembrar tal fato. – Ela foi capturada e preferiu morrer a se entregar aos seus raptores. Acabou por saltar desta torre.
- Coitada...
Perguntei-me por que diabos eu tinha levado aquela garota até ali. Com suas interjeições medonhas e palavras ocas, maculava o santuário de Cath, mostrando o quão tolo eu estava sendo ao pensar que ela pudesse demonstrar qualquer resquício do espírito de minha amada.
- Estou morrendo de fome! – continuou alegremente, sem respeito algum. – Este almoço sai ou não?
Devo ter expressado meu desagrado pela atitude de Leonora de forma tão escancarada, que o seu anjo abriu as asas sobre ela, em modo defensivo. Apenas sorri, achando graça do pobre coitado que tinha de proteger aquela jovem inconsequente.
- Sendo assim, vamos satisfazer seu apetite. Por aqui, por favor... – apontei o caminho de volta.
Mal tinha terminado a frase, surgiu outro ser diante de mim, batendo as asas furiosamente e fulminando-me com seu olhar flamejante. Era Ariel, a guardiã de Dominic. Por que diabos ela não cuidava apenas do seu protegido? Talvez achasse que o macho ao lado da jovem não fosse suficientemente eficaz para protegê-la?
- Leonora, pode descer sozinha? Quero ficar aqui mais alguns instantes. Logo estarei junto a você.
- Tá certo. Tô indo! – aceitou imediatamente, sem comentários.
Deste modo, fiquei sozinho a enfrentar a bela anja superprotetora.
- Vejo que resolveu adotar os dois irmãos... O seu superior sabe disso? Creio que ele não gostaria dessa intromissão. Além disso, acho uma falta de respeito com seu colega.
- Foi ele quem me avisou sobre este encontro absurdo. O que está pretendendo com essa garota? Já conquistou o irmão... Quais suas intenções? – perguntou arrogantemente, erguendo as sobrancelhas de um modo muito atraente.
- Está com ciúmes? – Gostava de atiçá-la e de observar as reações dela. Cheguei a pensar ter visto suas faces corarem, se é que anjos podiam ter este tipo de reação.
- Você é muito pretensioso. Não pense que vai me enganar fazendo este jogo de palavras. Sei que deve ter algum motivo obscuro que o atrai para estes irmãos.
- Não poderia ser apenas uma atração física por uma bela mulher? Aprecio muito a beleza, assim como as notas musicais. Há algum pecado nisso, Ariel? – disse seu nome pela primeira vez.
- Ela ainda é uma criança!
- Que eu saiba, ela tem dezessete anos e é bem esperta. Logo fará dezoito e poderá legalmente fazer suas próprias escolhas. – Sentia-me especialmente excitado por provocá-la.
- Pensei que respeitasse Dominic como amigo.
- Eu o respeito. Quem está maliciando é você. Eu apenas quis ser gentil convidando-a para almoçar. Não tenho intenção de levá-la para cama... Hoje.
Ariel estava indignada e eu estava adorando irritá-la.
- Se você tentar seduzi-la de alguma forma, terá que se haver comigo e com Dominic.
- Vou adorar acertar contas com você, meu bem – afirmei sarcasticamente, deixando-a mais agitada.
- Está avisado! – ameaçou e sumiu no ar tão inesperadamente como tinha surgido, deixando um rastro de perfume celestial e delicioso.
Surpreendentemente senti uma agradável integração entre aquela anja e o memorial de Cath. Aspirei o aroma no espaço que ela ocupara há alguns instantes e comecei a descida para a sala onde Leonora certamente estaria me esperando faminta.
- Pensei que tinha me esquecido... – disse ela ao perceber minha presença, já sentada no lugar preparado por Angus.
- Jamais esqueço minhas convidadas, principalmente quando são tão bonitas como você.
- Você me acha bonita? – indagou a insegura adolescente que ela era.
- Nunca lhe disseram isso?
- Na verdade, não... Sempre implicaram com as minhas sardas. Odeio elas!
- Pois eu acho que elas lhe dão um ar de sensualidade, que vai acompanhá-la mesmo quando estiver em idade madura.
- Fala sério? – perguntou deslumbrada com o elogio.
Eu apenas sorri.
- Bem, vamos ao nosso almoço.
Estranhei a ausência do guardião quando encontrei Leonora, mas foi apenas pensar nele, para vê-lo surgir atrás de sua protegida. Provavelmente estava em conferência com sua amiguinha intrometida.
(continua...)
Oi! Mais um capítulo do nosso novo romance. Queria agradecer à presença da Nadja e da Léia nos comentários, sempre prestigiando o blog e incentivando as minhas criações, no caso agora, em conjunto com a Aline, minha parceira. Queria agradecer também a presença da Joicy, minha nova seguidora e dona do blog http://joicy-santos.blogspot.com.br/ , onde ela dá um grande incentivo aos novos autores.
Hoje vou deixar aqui o booktrailer que fiz para o livro O Corsário Apaixonado e o link no Facebook, onde a Léia, carinhosamente, criou uma página para esse romance. Vão até lá curtir(aqui) e deixar seus comentários.
Um grande beijo, meus queridos!!Até a próxima postagem!
Rosane!!
ResponderExcluirConsegui postar de novo!!kkkk
Este novo romance esta muito bom cheio de suspense e de mto romance tb..
Não vejo a hora do vampirão atacar de novo..
Bjs
Olá, lhe conheci no blog do Junior Menezes e vim visitar o seu. Antes de tudo, quero lhe recomendar para que reveja as configurações no blooger, pois não vi nada de censurável ou de conteúdo adulto no seu blog, muito pelo contrário. Mas o que de fato me trouxe foi ode saber que és uma autora,então, a exemplo do que fiz com o Junior, se lhe interessar, posso divulgar suas obras no meu blog. Dê uma olhada, se lhe atrair entre em contato.
ResponderExcluirAbraços,
J.R.Viviani
http://vendedordeilusao.blogspot.com
Puxa... Rosane, você tem um talento incrível para este tipo de história... Lendo a sua narrativa a gente percebe um realismos ímpar!!! Muito bom mesmo!!! Sem falar nos diálogos, que tornam a leitura cheia de ação e emoção!!! Parabéns, minha estimada, amiga!!! Você merece!!!
ResponderExcluirMeu deus cada capítulo eu surto com esse Kyle, meu cerébro é frágil não resiste tamanha tentação... kkk E essas provocações que dom incrivel ele tem e como eu venho dizendo ainda acredito que vai nos surpreender e muito. Agora gente vamos amadureçer só um tiquinho a Leonora quanta inoscencia chega me dar coçeiras de tanta aflição as coisas aconteçendo e ela empacada no mundo infantil... desabafei... kkk Mas claro que para causar tudo isso, tem que ter exelentes escritoras por trás não canso em dizer isso.
ResponderExcluirÉ por essas e outras que faço questão de divulgar o blog e os livros dessas estórias primorosas que mereçe toda atenção cabível. Conte sempre comigo e agradeço pelas palavras e pela sua humildade por cada um dos seus leitores Rosane. Super beijo no seu coração querida.
Que lindo! Que lindo a DDC aí,eu quem agradeço à você por me dar motivos a incentivar novos autores!
ResponderExcluirTem uma mega promoção rolando no blog,confere lá:
http://joicy-santos.blogspot.com.br/
Amigas, essa Leonora é doidinha de pedra! Vai pegar carona com Sinclair, um homem mais velho do que ela, que mal conhece. Aceita ir jantar com ele e vai até a casa dele e ainda entra em uma passagem secreta?!! Santa inocência nos dias atuais!!! Tadinha, deveria estar se achando a dona da cocada e foi se deixando levar, sem pensar nas conseqüências, o que é o grande problema nos dias atuais.
ResponderExcluirSinclair tem que entender que a Leonora é diferente da Cath, apesar de ter certa semelhança física. Mas Leonora é muito jovem, imatura, tem pensamentos e atitudes compatíveis com sua idade, o que causa um grande choque com o que ele esperava obter. Já a discussão de Ariel e o Sinclair é deliciosa... hihihi
PS Adorei o booktrailer, magistral!!! Acho que vc deveria fazer um desses para cada livro teu, pois é espetacular!
Beijinhos