Acabara de sair dos braços de uma rechonchuda francesa, com quem passara algumas horas da noite, depois de beber vários copos de rum. A dor de cabeça e um amargo na boca o incomodavam. A luz do dia o obrigava a estreitar os olhos para poder enxergar por onde andava. Não tinha o costume de beber em demasia, mas o rum poderia ser muito reconfortante nos dias de solidão e nas frias noites passadas no Highlander. Naquela noite sentira-se excepcionalmente solitário sentado em uma mesa de bar semelhante àquela em que conversara pela primeira vez com Brian Hawke dez anos antes. Talvez estivesse cansado daquela vida nômade. Às vezes pensava em voltar à casa de seu pai, colocar flores no túmulo de Tammy e respirar o ar puro das pastagens e das flores no jardim que era de sua mãe e que fora mantido por sua tia. Ultimamente era frequente pensar na casa paterna. Às vezes as palavras do senhor Krane voltavam a assombrá-lo –... seu pai está preocupado e saudoso com sua ausência... –, outras vezes lembrava o dia do enterro de sua tia Tammy e a tentativa de reaproximação. Buscava desviar-se desses pensamentos ao se lembrar da punição, por deserção da Marinha, que o aguardava caso aparecesse por lá. Draco falecera há dois anos, mas isso não era motivo para arquivarem o seu crime.
Havia desembarcado numa praia afastada do centro de La Rochelle, para não serem incomodados pela milícia local. Precisava de mantimentos, rum e diversão para os homens, que não pisavam em terra há mais de três semanas. Por sua vez, também gostava da sensação de estar nas ruas, ter chão firme sob os pés, cheirando odores dos mais variados, que não o cheiro da maresia ou do suor de seus marujos. Saborear a carne de carneiro, legumes e frutas frescas, raridades a bordo, comer pão quente e dormir em camas que não balançavam ao sabor das marés, eram outros prazeres irrefutáveis. Distraído, parou em frente a uma banca onde maçãs grandes e vermelhas lhe sorriam. Enquanto escolhia qual seria o seu café da manhã, sofreu um encontrão que quase o jogou por cima da pilha de frutas. Ouviu um rápido pedido de desculpas em uma voz que lembrava a de um adolescente. Conseguiu recuperar o equilíbrio e, ao se virar para insultar quem o havia empurrado, viu uma figura de baixa estatura, vestindo uma capa de tecido surrado, se esgueirando pelo meio da confusão de pessoas atarefadas em comprar e vender no mercado a céu aberto.
- Se eu fosse o senhor, olharia seus bolsos... – advertiu o dono da banca.
- O quê? – exclamou, imediatamente palpando-se a procura de sua bolsa de moedas e verificando que ela desaparecera.
Soltou uma praga e saiu correndo no encalço do pivete. Graças a sua altura, conseguia enxergar o garoto como uma mancha marrom ondulando entre as barracas, andando agilmente, mas sem correr, provavelmente seguro de que não era mais perseguido. Crow rapidamente aproximou-se do ladrão e quando estava quase a tocá-lo, este o percebeu e começou a correr. No caminho pulou sobre caixas de madeira, barris de rum e tentou esconder-se sob uma ou outra barraca da feira. Porém seu perseguidor era implacável. Acabou por entrar em um dos becos que se encontrava na penumbra devido às sombras dos prédios ao redor e pelos diversos varais com roupas estendidas a secar. Fora isso havia inúmeros caixotes deixados ali pelos feirantes. Podia ouvir a respiração arfante do rapaz. Certamente estava escondido atrás de uma das caixas grandes. Quando se aproximou de uma delas, foi surpreendido pelo despencar de um varal sobre sua cabeça. Com agilidade conseguiu desvencilhar-se dos tecidos molhados e gritar:
- Olhe, garoto! Não quero lhe fazer mal. Se devolver minha bolsa deixo-o com vida e uma moeda de prata.
- Uma oferta muito generosa, monsieur... Mas por que eu me contentaria com uma moeda de prata se tenho uma bolsa cheia delas? Replicou a estranha voz de barítono. Ele está tentando engrossar a voz?, perguntou-se Crow, divertido com o atrevimento do pequeno larápio, tentando localizar de onde vinha aquela voz.
Viu uma sombra atrás de uma porta entreaberta e continuou falando para distraí-lo.
- É como eu falei... Acha que sua vida vale menos que um punhado de moedas?
Após um curioso silêncio, o garoto respondeu:
- Talvez eu precise delas para me manter vivo, monsieur – respondeu alquebrado, comovendo Crow.
- Por que não sai dessa sombra e vem falar comigo de homem para homem? Talvez eu possa ajudá-lo...
Como não obtivesse resposta, foi direto para onde pensava ter visto o rapaz, mas ali só encontrou a capa amarfanhada pendurada de forma a simular um vulto.
- Au revoir, monsieur! – cantou o ladrãozinho.
Irritado pelo fato de ter sido enganado por um pirralho, seguiu novamente o murmúrio e acabou por ve-lo escapando através de uma sacada para o alto dos telhados.
- Maldição! – disse para si mesmo, lançando-se na escalada do edifício para chegar ao topo e continuar sua perseguição. E pensar que tinha ficado com pena do infeliz. Ele pagaria caro por se atrever a fazê-lo correr daquela maneira. Foi quando ouviu um ruído de tijolos quebrando-se e um grito. Em segundos conseguiu alcançar o local onde o telhado ruíra e ver um garoto malvestido com um gorro enterrado na cabeça, segurando-se numa esquadria de madeira prestes a rachar. Ao ver o desespero estampado no rosto jovem e sujo de fuligem, antes de salvá-lo não pode deixar de dizer:
- Ainda acha que sua vida vale apenas um punhado de moedas?
- Não me venha com lição de moral! Me tira daqui, seu infeliz! – Sentia suas forças se exaurirem e gritou – Estou escorregando! Por favor! Me ajude!
Quando sua mão se desprendeu do apoio e o medo da queda mortal fez com que fechasse os olhos, uma mão poderosa agarrou seu pulso e puxou seu corpo para cima, sem dificuldade.
Ainda tremia quando empurrou seu salvador, tentando escapulir. Contudo, dessa vez Crow foi mais rápido e segurou o fujão pelo braço e o puxou com violência.
- Onde pensa que vai? Tem algo que me pertence!
O jovem olhou-o diretamente pela primeira vez e Crow sofreu um choque ao ver o mesmo olhar triste e assustado que vira dez anos antes no rosto de uma menina. Devia estar sonhando. Foi acordado com um chute na canela.
- Ai!
- Me solta, seu desgraçado! – gritava e inutilmente lutava com os pés e as mãos para escapar de Crow.
- Devolva minha bolsa e eu o solto! – ordenou.
Como o outro não parasse de lutar, resolveu ele mesmo revistá-lo. Conseguiu ficar às suas costas e prender o corpo na altura do peito com seu braço, ficando com uma das mãos livres para procurar suas moedas. Entretanto, ao apalpá-lo, notou, além da musculatura rija, algumas proeminências macias e curvas generosas, incomuns num corpo masculino, mesmo para um adolescente.
- Ora, ora... O que temos aqui? – disse ao mesmo tempo em que arrancava o gorro que escondia desgrenhados e longos cabelos ruivos, levando-o novamente ao passado.
- Vou matar você assim que me soltar!
- Então não vou poder soltá-la – ameaçou, pensando que certamente aquela não era a Ana, filha de um fidalgo espanhol e de uma nobre inglesa, a julgar por seu linguajar e atitudes.
Com medo de que a revista se tornasse muito íntima, ela mudou de ideia.
- Está bem! Eu devolvo suas moedas! – cedeu, parando de se debater. – Mas preciso das mãos para alcançar.
Desconfiado, afrouxou um pouco o laço em torno da moça e liberou um de seus braços, observando-a atentamente. Ela se curvou um pouco, para impedir a visão de Crow sobre a mão livre buscando entre os seios o produto de seu roubo fracassado.
- Pronto! Aqui está! Agora me solta!
Depois de pegar suas moedas, virou a garota para poder ver seu rosto, mantendo-a junto ao seu peito. Se sua memória não o estivesse enganando, aquela garota era muito parecida com a mulher inglesa que Drake colocara a deriva com a filha...
- O que está olhando! Vai me largar ou não? Ou quem sabe vai me entregar para a milícia?
- Como é o seu nome?
- Por que quer saber? – respondeu desconfiada do tom afável do estranho. Há muito ninguém a tratava com respeito... – Me deixe ir! Já devolvi suas moedas – Começava a imaginar o que aquele homem queria com ela e o pânico começou a dominá-la.
- Calma... Só quero saber seu nome. Não vou violentá-la, se é o que está pensando – Leu seus pensamentos.
Enquanto decidia se ele falava a verdade ou não, passou a observar seu rosto com atenção. Apesar da barba que o fazia parecer mais velho, tinha penetrantes olhos da cor de esmeraldas. A boca era bem desenhada, de lábios cheios e muito tentadores. Quantas mulheres já teriam sucumbido aos seus beijos? Levava os cabelos negros e fartos presos à nuca. Quando soltos deviam bater abaixo dos ombros. Tinha porte altivo e elegante. Seria alguém da nobreza? De repente, abriu e fechou os olhos, sacudindo a cabeça, afastando a possibilidade de ele ser diferente dos outros homens. Não se deixaria enganar por sua bela aparência.
- Marie... Meu nome é Marie.
- Marie... Belo nome. – repetiu sorrindo.
- Agora que já sabe meu nome, me deixe ir – ordenou debatendo-se inutilmente nos braços de Crow.
- Você tem família, Marie?
- O que lhe interessa?... – dizendo isso aplicou um joelhaço entre as coxas de Crow, fazendo-o gemer alto enquanto a soltava para dobrar-se ao meio pela dor.
Aproveitando que a bolsa dele caíra ao chão, pegou-a de volta e saiu correndo. Desapareceu entre os edifícios antes que ele se recuperasse da agressão física e da humilhação sofrida nas mãos de uma mulher. Praguejou mais uma vez e se levantou, verificando que seria inútil alcançá-la. Reencontrá-la agora era uma questão de honra. Pretendia dar uma boa lição naquela delinquente e recuperar seu dinheiro. Devia ser conhecida dos mercadores... Lembrou-se do fruteiro que o alertou para o roubo e decidiu procurá-lo.
Não conseguiu saber muita coisa, a não ser que a garota costumava andar por ali a procura de desatentos com os bolsos cheios. Perguntou se poderia encontrá-la nas tabernas à noite entre as mulheres que se ofereciam por lá, mas o homem disse que não sabia nada sobre isso. A ele restava vigiar o mercado. Talvez ela aparecesse novamente quando se sentisse segura de que ele fora embora. Sendo assim, Crow despediu-se do feirante, prometendo a si mesmo que não desistiria de sua busca.
(continua...)
Não resisti e fiz a revisão do texto para postar hoje. No sábado termino de postar este segundo capítulo.
Beijos!!
Oiee...
ResponderExcluirEu arrasando não,não um dia eu chego perto de como escreve...
Sobre a idéia da Nadja é bem interessante mas eu não entendo nada de música...rsrsrs
Ahh...Gostei desse capitulo me vi naquelas feiras de Marrocos...rsrsrs
Beijoss
Aiii Rô!!
ResponderExcluirQue lindo, digamos que não é o mais romântico dos encontros, mas é com certeza o mais curioso, rsrsrs. Imaginei muitas vezes como ele seria e você superou minhas expectativas amiga!
Como sempre estou cada vez mais curiosa com os próximos acontecimentos e com o que aconteceu há dez anos, acho que o Crow ainda vai ter muitas outras "dores" além da que sofreu nesse capítulo, rsrsrs.
Ansiosíssima pelo próximo post.
Beijos amiga querida!!!!
Voltei!
ResponderExcluirRô, por que você não coloca "botões de compartilhamento"? O meu blog e o de Luiz Fernando tem, assim dá pra divulgar no face e no orkut, agora há pouco fui divulgar O Corsário Apaixonado mas não tem como.
Beijooo!!!!
Miguxa! peço desculpas pelo meu comentário anterior, como assisti pouquissímos filmes na linha de piratas, calhou algumas pinceladas da estória lembra lançes do filme que citei anteriormente, mas ñ fui feliz no comentário... Como diz meu pai... - Desculpe a vergonha que passei. kkk
ResponderExcluirHoje fico por aqui pra ñ cometer nenhum deslize... kkk e claro já estou quase sem as unhas de curiosidade do que vem por ai.
* * *Beijão* * *
Léia, minha amiga amada! Por favor... Longe de mim ter ficado chateada com o teu comentário.Fico até envaidecida por pensares que eu seria capaz de escrever algo como o roteiro de sucesso do Piratas do Caribe (que eu adoro!).Quem me dera... Só posso agradecer de novo a tua presença tão querida aqui no blog e por teres paciência de ler as minhas "viagens".
ResponderExcluirTe adoro!!
Todo o meu carinho e um grande beijo!
Oi, Luiz Fernando! Adorei o comentário. É muito bom saber que a gente consegue fazer o leitor imaginar as cenas e os ambientes que se descreve. Quanto à ideia da Nadja, não tens nenhum amigo músico? Quem sabe?
ResponderExcluirBeijinhos!!
Nadja! Não esqueci de ti. Adorei a tua ideia! Mandei um email.
ResponderExcluirBeijão!!
É complicado mesmo para o Crow fazer a ligação entre alguém vindo da nobreza e uma menina-moleque que estava diante dele, mas as situações da vida, às vezes, obriga-nos a termos certo jogo de cintura para que possamos nos adequar às novas realidades que nos são impostas. E ela teve que aprender a sobreviver como dava e não como gostaria, se pudesse escolher.
ResponderExcluirAi, amiga, não descreve o Crow assim (“cabelos negros e fartos... Apesar da barba que o fazia parecer mais velho, tinha penetrantes olhos da cor de esmeraldas. A boca era bem desenhada, de lábios cheios e muito tentadores...”) ... meu coraçãozinho não aguenta... *suspirando*...
Beijinhos
Não consigo parar de ler Corsário Apaixonado! quero só ver quando acabar as postagens e eu tiver que esperar para ler semanalmente!!
ResponderExcluirBeijos
Brih
Meu Livro Rosa Pink