Abriu a porta da frente e ficou surpresa quando não o viu. Sentiu medo que ele pudesse ter fugido. Começou a chamar por seu nome.
- Antonio! Antonio! – gritava, já a caminho do desespero, saindo na frente da casa, na direção da mata, quando sentiu sua presença atrás de si. Chegou a sentir o hálito quente em sua nuca, quando ele disse, com voz mais rouca que o normal:
- Estou aqui. Não se preocupe. Não vou fugir de você.
Sentiu seus joelhos enfraquecerem . Virou-se instintivamente na sua direção, para encontrá-lo face a face, encarando-a. Quase caiu para trás, mas conseguiu equilibrar-se e dizer, quase sem fôlego:
- Onde você estava? Não faça mais isso, por favor!
- Não queria assustá-la – disse, notando verdadeira aflição na expressão da médica – Eu apenas fui dar uma volta. A noite está realmente muito convidativa, como você falou.
- Desculpe, mas fiquei preocupada quando não o vi.
- Sei. Você já me disse que se eu desaparecer poderá ser presa em meu lugar. Prometo que não vou assustá-la mais – afirmou com o rosto muito sério, mostrando as rugas franzidas na testa ampla.
- Não! Não é só por este motivo que fiquei preocupada...
- Não? – perguntou com certa animação no olhar.
- Ah, deixa prá lá... Vim aqui para pedir que me ajudasse a colocar a mesa. O jantar está pronto. Agora já deve estar frio... Vamos?
- Vamos – disse isto e entrou cabisbaixo, logo atrás dela, subindo os degraus para a varanda.
Durante o jantar, Antonio conseguiu soltar um lacônico elogio, provavelmente falso, a respeito da comida de Sílvia, ao que ela agradeceu, meio sem graça. Nunca fora boa cozinheira. Talvez buscasse algum livro de “culinária fácil” para poder preparar refeições mais palatáveis para seu tutelado.
- Se quiser fugir, depois deste jantar, eu permito, pois a comida está péssima – disse em tom de brincadeira, o que fez aparecer um lindo sorriso nos lábios dele.
- Não, eu posso aguentar. Não se preocupe com isso.
- Antonio, – falou em tom mais sério – precisamos conversar a respeito da sua estada aqui e de como eu me sinto em relação a isso.
- Como você quiser. Pode falar – disse, fixando seu olhar em Sílvia.
- Quero que você saiba que eu sou uma pessoa extremamente ética. Eu o trouxe para cá porque queria que você tivesse a chance de se reabilitar fora de um ambiente insalubre, como seria o caso de um sanatório judiciário. Eu não o trouxe para cá para fins românticos. O que levou a interessar-me pelo seu caso foi o seu pedido de ajuda, quando estávamos na ambulância à caminho do hospital. Creio que você ainda sabia que alguma coisa muito séria estava acontecendo e precisava de auxílio. Você parecia desesperado. Depois perdeu os sentidos e, quando voltou a si, já estava sem memória. Portanto eu gostaria que a nossa relação ficasse dentro dos limites que uma relação médico-paciente amigável possa ter.
- Como você quiser, doutora – seu olhar tornara-se um misto de mágoa e sarcasmo.
Ela engoliu em seco e suspirou, tentando desviar os olhos daquele homem, por quem estava cada vez mais atraída. Não conseguiu dizer mais nada. Talvez ele, mais tarde, pudesse entender o seu modo de agir. No fundo, ela começava a pensar em atirar a ética para o espaço e jogar-se por inteiro em seus braços . Mas o juramento de Hipócrates ainda falava mais alto que o seu coração.
Após estes esclarecimentos, o jantar acabou. Ele não quis a sobremesa que ela preparara com tanto cuidado. Ofereceu-se para ajudá-la com a louça, mas foi recusado. Isto o fez retrair-se mais uma vez, até que disse boa noite e fez menção de retirar-se para seu quarto.
- Antonio... – ia falar-lhe sobre o que acontecera pouco antes do jantar, com o seu computador, mas desistiu ao vê-lo tão tristonho.
- Sim?...
- Boa noite – foi só o que conseguiu dizer.
Ainda era muito cedo para dormir, quando acabou de arrumar a cozinha. Sendo assim, resolveu fazer uma pesquisa na Internet sobre pessoas desaparecidas. Não conseguiu achar nada. Depois de algum tempo, decidiu ir deitar-se e continuar a leitura do seu livro, que nunca conseguia acabar. Ficava na mesa de cabeceira, a sua espera nos finais de semana. Ela conseguia ler poucas linhas e logo caía no sono. Talvez ele não fosse muito interessante. Naquela noite, ele foi deixado, não pelo sono, mas porque Sílvia não conseguia prestar atenção na leitura. Sua cabeça fervilhava com todos os fatos ocorridos no dia e a luta para aplacar seu desejo por um total desconhecido que dormia no quarto ao lado.
Não saberia dizer a que horas o cansaço saiu-se vitorioso, mas pareceu que o dia amanhecera antes do que devia. Acordou com ruídos dentro da casa. Não estava habituada àquilo, por isto, acordou sobressaltada. Até lembrar que tinha um hóspede, seu coração ficou acelerado. Levantou-se e, depois de olhar-se no espelho de seu tocador e conferir sua aparência, abriu a porta que dava para o corredor. Deu uma espiada e, como não o viu, correu para o banheiro. Quando abriu a porta, para retornar ao quarto, deu de cara com Antonio, vestido apenas com seu novo jeans.
- Bom dia! – saudou-a sorrindo, principalmente depois de notar que ela não conseguia tirar os olhos de seu corpo.
- Bom dia – respondeu Sílvia encabulada, por estar apenas de roupão, sem conseguir olhá-lo nos olhos.
- Tomei a liberdade de fazer o café. Não fica chateada se eu mexer em suas coisas?
- Não, claro que não. Que bom já ter café pronto! – conseguiu dizer, forçando uma naturalidade inexistente – Vou colocar uma roupa e já volto.
- Estou te esperando...
Alguns minutos depois, estava sentada à mesa, tomando uma xícara de café e comendo um ótimo sanduíche preparado por Antonio. Ele tinha tido o bom senso de colocar uma camisa.
- Parece que você consegue sair-se melhor que eu na cozinha.
- É... Parece que sei fazer muitas coisas. Só não consigo lembrar o que aconteceu antes do acidente.
- Não se preocupe. A sua memória vai voltar. Tem que ter paciência.
- Gostaria que voltasse logo, para eu não ter que incomodar você com a minha presença. Sei que está sendo um transtorno para você. Fiquei pensando se não seria melhor ficar no tal sanatório. Você, pelo que me falou, não é psiquiatra. Lá eu teria profissionais mais habilitados para tratar este meu, digamos, esquecimento.
- Não diga bobagens, Antonio! Nestes estabelecimentos não há um tratamento. É apenas um depósito de delinqüentes perigosos, psicopatas ou malandros que querem livrar-se da prisão de verdade.
- Como você pode ter certeza de que não estou incluído em nenhuma destas categorias?
- Não vamos falar sobre isto de novo. Já disse que confio em você e tenho certeza de que você é vítima e não réu. Vamos tentar fazer coisas práticas. Com a Internet funcionando, que tal ver fotos de lugares, que possam lembrar onde você mora? Ontem eu procurei saber sobre pessoas desaparecidas, mas não encontrei nada. Você não teve nenhum sonho esta noite?
- Tive... Mas não vai interessá-la.
- Porque não? Lembrou-o de alguma coisa?
- Não.
- Mas o que você sonhou?
- Com você – disse ele fazendo cara de bobo, conseguindo arrancar-lhe um sorriso.
- Antonio! Assim fica difícil. Você parece criança.
- Você é que perguntou e insistiu em saber – falou, sorrindo maliciosamente – Está bem, desculpe. Não precisa ficar chateada. Você tem razão. Talvez seja uma boa idéia. Não precisa trabalhar hoje?
- Não. Hoje é domingo. Teremos que combinar como faremos amanhã, pois terei que visitar alguns pacientes pela manhã e trabalhar no consultório à tarde. Você vai ter que ficar sozinho.
- Acho que consigo me cuidar sem a minha babá.
- Lá vem você com o seu senso de humor..
Ele levantou-se da mesa e foi direto para a escrivaninha onde ficava o computador. Sentou-se e começou a navegação.
- Já que temos que trabalhar para minha recuperação, então vamos começar logo. O que você sugere como primeiro lugar a visitar?
- Que tal Ribeirão Preto? De lá veio o carro que você estava dirigindo.
- O carro roubado – falou com ironia.
- Esse mesmo.
Logo surgiram fotos da cidade universitária paulista na tela do computador. Sílvia admirava-se da intimidade com o teclado e com a navegação através da web que Antonio apresentava.
- E então? Lembra de alguma coisa, imagem ou pessoas?
- Nada...
- Tente Campinas – sugeriu Sílvia.
Sucessivamente, várias cidades iam aparecendo diante de Antonio, mas nada o fazia lembrar-se de coisa alguma. Até que...
- São Paulo. Tente São Paulo.
- Algum motivo especial?
- Nenhum. Apenas é a capital do estado e ainda não foi vista.
- Está bom, não custa tentar.
Começou a olhar as fotos da cidade e a sua expressão foi mudando à medida que as imagens desfilavam a sua frente.
- O que houve, Antonio? Lembrou de alguma coisa?
Ele continuava a olhar fixo para a tela, como se estivesse hipnotizado pelo brilho do visor. Sílvia resolveu deixá-lo à vontade, com medo de interromper o curso das lembranças que poderiam estar retornando. Alguns minutos se passaram, sem que ele dissesse uma só palavra. Ao final, como se tivesse feito um grande esforço, saiu de seu transe com a testa banhada de suor. Ela acompanhava todos os seus movimentos, até que não aguentou mais e perguntou aflita:
- Lembrou de algo?
- Eu conheço São Paulo. Eu acho que tenho negócios por lá. Tive algumas reuniões para falar sobre... Alguma coisa relacionada com computadores e governo... Eu acho. É tudo muito confuso...
- Será que você trabalha mesmo com isso? – perguntou intrigada – Mas aí alguém já estaria a sua procura... Teria alguma notícia no jornal...
- Ou não.
- Como assim?
- Não sei, Sílvia. Talvez exista algum motivo para não noticiarem o fato ou eu não sou ninguém importante. Realmente não sei.
- É, você pode estar certo – falou, notando que ele estava um pouco abalado – Olha, não se preocupe. Os fatos vão retornar aos poucos, provavelmente em “flashs”.
- Eu sei... É que fiquei com uma sensação ruim, não sei por quê.
- Que tal darmos uma volta de carro? Posso lhe apresentar a minha cidade natal e depois damos uma volta na rodovia onde você se acidentou. Talvez lembre mais alguma coisa. Está certo?
- Claro, claro. Podemos fazer isso – disse com expressão mais aliviada.
- Então me ajude com a louça do café e saímos logo em seguida. Podemos almoçar em Valverde. Conheço um restaurante muito bom. Muito simples, mas com uma comida caseira excelente.
- Vai ser ótimo comer uma boa comida – falou sorrindo, olhando-a de soslaio.
Sílvia sentiu que ele estava criticando a sua refeição do dia anterior.
- Vai ser bom mesmo. Estará livre da minha cozinha experimental. Vou perguntar se eles não fornecem comida para viagem – tentou fazer que estava ofendida com o seu comentário, não conseguindo evitar um sorriso.
- Estou brincando, Sílvia. O seu jantar estava muito bom – seu olhar denunciava a ironia do elogio.
- Mentiroso... Mas não faz mal. Eu tenho perfeita noção de minhas qualidades culinárias.
Ela conseguiu arrancar uma franca gargalhada dele.
Ela mostrou-lhe os “pontos turísticos” de Valverde. A prefeitura, a igreja, a praça principal, e a escola onde seus pais lecionavam. Passaram por seu consultório e em frente ao seu apartamento. Sílvia resolveu não parar para verificar a correspondência, como pensara em fazer, para não estimular idéias erradas. Seguiram até o pórtico da cidade, onde funcionava o seu plantão semanal, e saíram na direção da rodovia. Ela dirigiu até o ponto onde ocorrera o acidente , mas Antonio não parecia recordar nada novo. “Talvez porque o acidente tenha sido à noite”, pensou Sílvia.
Depois desta curta viagem, a velha caminhonete retornou a Valverde, direto para o restaurante Alvorada. Como Sílvia o havia prevenido, o ambiente era muito simples, mas a comida era deliciosa.
- Sabia que você ia gostar. Podemos pedir para levar. Assim já teremos algo decente para comer no jantar. Que tal?
- Por mim tudo bem, mas acho que você está se menosprezando – falou, tentando ser gentil.
- Então está resolvido... Vou pedir para levar – disse com um grande sorriso.
Quando se preparavam para sair, Franco entrou com a esposa, Elaine, e sua filha de cinco anos, Mariana.
- Sílvia! Que surpresa ver você por aqui! Como vai? – disse, já lançando um olhar surpreso para o seu acompanhante.
- Tudo bem, Franco! Como vai, Elaine? E essa garotinha linda? – falou, fazendo um carinho na menina.
- Vejo que está acompanhada...
- Ah, deixe-me apresentá-los. Antonio, este é Franco, meu parceiro de plantões. Foi ele que me acompanhou no seu resgate.
- Muito prazer e obrigado pela sua ajuda. Como pode ver vocês fizeram um bom trabalho.
Franco sorria, mas Sílvia sentiu que sua expressão continha uma dose de preocupação. Ela já o conhecia tempo suficiente para perceber quando ele sentia que algo não estava certo. Sendo assim, ela deu um jeito de fazer as despedidas rapidamente e sair o mais rápido possível dali. Não queria ter que dar explicações no meio de um restaurante e na frente de Antonio. Tinha certeza de que seria bombardeada de questões no dia de seu plantão em quatro dias. Até lá, esperava ter argumentos mais consistentes para convencê-lo a não se preocupar com sua atitude para com Antonio.
- Bem, vamos deixá-los curtir o seu domingo. Elaine, foi um prazer revê-la. Franco, até quinta! – dizendo isto, foi retirando-se, quase arrastando Antonio para fora do restaurante, assim que ouviu os “até mais” dos amigos.
- O que foi que aconteceu ali? – perguntou Antonio curioso com sua despedida inesperada.
- Nada... Apenas achei que eles queriam ficar a sós. O Franco trabalha muito durante a semana e só lhe resta o domingo para aproveitar junto a sua família. Não notou o olhar de “tomara que ela suma daqui o mais rápido possível” da esposa dele? – inventou a desculpa na hora.
- Não, sinceramente não notei. O que vi foi um olhar de espanto da família com a sua saída brusca, me arrastando entre as mesas do restaurante, quase derrubando algumas cadeiras.
- Você está exagerando.
- Ok! Vai me contar o que houve ou vou começar a achar que tem um caso com este tal de Franco, colega de plantão.
- O quê? Caso com Franco? – com esta suspeita no ar, Sílvia não conseguiu segurar o riso – Eu de caso com Franco... Essa é muito boa...De onde você tirou isto?
- Da sua atitude de agora há pouco. Você praticamente fugiu deles.
Quando ela conseguiu parar de rir, já na rua, a caminho do estacionamento onde estava sua caminhonete, olhou para Antonio e disse:
- Claro que eu não tenho nada com Franco. Ele é só um grande amigo e colega.
- Então, porque agiu daquele jeito? Não me diga que foi para deixá-los se curtirem, pois nesta não dá para acreditar.
- Está bem – falou, já conseguindo retornar a seriedade – É que desde que resolvi me meter neste seu caso de perda de memória, não tem uma pessoa que não chegue para mim e venha me dizer que estou errada, que é perigoso, que não sei onde estou me metendo... Até você, sempre dá um jeito de me dizer isto. Assim, resolvi protelar o sermão de Franco para quinta feira, durante o nosso plantão. Gostou da explicação agora?
- Foi bem mais convincente desta vez... – ele a olhou com ternura – Talvez eles tenham razão...
- Ah, não! De novo, não. Não quero mais falar sobre este assunto. Chega! Vamos para casa. O passeio acabou! – Entrou na camionete e bateu a porta com força.
Ele a seguiu em silencio e sentou ao seu lado, fechando a porta calmamente. Ficou olhando em sua direção, enquanto ela dava a partida no motor e acelerava, “cantando” os pneus, em direção à estrada. Ficou assim por alguns minutos, até que não aguentando mais o seu olhar insistente, Sílvia perguntou:
- O que você está olhando? – ainda com certa raiva na voz.
- Você fica ainda mais bonita quando está brava...
Sem olhar para ele, sentiu-se desarmar da fúria em que estava, até que começou a sorrir, sentindo que devia estar sendo ridícula naquele seu ataque.
- Assim então, sorridente, fica mais tentadora...
- Antonio! – censurou-o – Olha, desculpe o meu comportamento, mas é que depois que tomo uma decisão, não suporto que fiquem me criticando ou tentando me persuadir a desistir do que quero fazer. Eu sou uma pessoa muito perseverante e não gosto de fazer as coisas pela metade.
- Está bem, eu entendo, e fico muito lisonjeado por ser o foco atual da sua atenção. Não se fala mais nisso. Feliz?
- Satisfeita...
Seguiram em silencio até a cabana.
(continua...)
Beijos!!
Ah não!!! Agora q estava ficando bom... bem, espero com ansiedade as cenas dos próximos capítulos! Bjos!
ResponderExcluirLogo, logo, coloco a continuação, Aline...rsrsrs
ResponderExcluirBeijinhos!!
Que surpresa maravilhosa eu tive Rô, acessei o blog achando que leria um capítulo e encontro dois!!!
ResponderExcluirEstou muiiito curiosa com os próximos acontecimentos, fico tentando imaginar o que ele faz, o que o levou a entrar nessa situação, mas sinceramente a veia da inspiração não faz parte do meu corpo, rsrsrsrs. O mesmo não posso dizer da imaginação, e com a riqueza de detalhes que você fornece é só fechar os olhos e visualizar "Antonio" na minha frente, numa cabana (muito sugestivo), com camisa branca, sem camisa, seja lá como for.....ai meu Deussssss............................
Assim como a Aline estou esperando com ansiedade os próximos capítulos, espero não surtar até lá.
Um cheiroooo!!!
Oi, Nadja! Não devo demorar muito a postar a continuação, pois este romance já está todo escrito. Estou fazendo uma revisão do português e relendo de novo para ver o que dá para melhorar.
ResponderExcluirAdorei teu comentário. Beijos!!